MOVIMENTO

Mobilização popular elege candidato socialista na Bolívia

Contagem de votos preliminar aponta vitória do candidato do MAS, partido de Evo Morales, com 52% dos votos, contra 31,5% de Carlos Mesa e 14,1% de Luis Fernando Camacho
Por Gilson Camargo / Publicado em 20 de outubro de 2020
O indígena David Choquehuanca, candidato a vice, e Arce, à presidência da Bolívia, comemoraram o resultado da eleição antes da apuração dos votos

Foto: Luis Arce/Twitter/Reprodução

O indígena David Choquehuanca, candidato a vice, e Arce, à presidência da Bolívia, comemoraram o resultado da eleição antes da apuração dos votos

Foto: Luis Arce/Twitter/Reprodução

Projeções da contagem de votos da eleição presidencial encerrada domingo na Bolívia apontam uma vantagem superior a 40% dos votos para o candidato Luis Arce, do Movimiento al Socialismo (MAS), ex-ministro de Evo Morales que foi reeleito em 2019, mas renunciou ao cargo por pressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) e se exilou no México. “Agradeço aos observadores que tiveram a gentileza de vir a nossa casa e ouvir nossas preocupações sobre o andamento do sistema eleitoral”, disse Arce ao comemorar antecipadamente a vitória. “Os resultados mostram que o povo é sábio e vamos atender com todas as expectativas”.

Uma pesquisa de boca de urna feita pelo instituto Ciesmori e divulgada pela Unitel mostrou Arce com 52,4% dos votos. O adversário dele, o ex-presidente Carlos Mesa, candidato de centro pela coligação Comunidad Ciudadana (CC), aparecia com 31,5% na pesquisa. Popularizado como uma espécie de “bolsonaro boliviano”, o candidato de extrema-direita, Luis Fernando Camacho, um dos organizadores do golpe pós-eleição de 2019 que impediu Morales de assumir, é o terceiro colocado, com 14,1% dos votos. Pelas regras eleitorais do país, o candidato que tiver 50% dos votos mais um ou atingir o patamar 40%, com dez pontos percentuais a mais que o segundo colocado, pode vencer a eleição no primeiro turno.

Capa desta terça-feira, 20, do jornal argentino Pagina 12 destaca levante indígena que devolve o país a um governo popular após o golpe de 2019

Foto: Reprodução

Capa desta terça-feira, 20, do jornal argentino Pagina 12 destaca levante indígena que devolve o país a um governo popular após o golpe de 2019

Foto: Reprodução

Apesar da lenta contagem oficial dos votos, a vitória do candidato socialista já é dada como certa até por empresas privadas ligadas aos seus adversários e que especulam com pesquisas de boca de urna desde domingo. Um desses escrutínios foi endossado tanto pela presidente interina do país, a senadora ultra-direitista Jeanine Áñez, quanto pelo segundo colocado e aliado dela, Carlos Mesa. “Ainda não temos a apuração oficial, mas pelas nossas contas o senhor Arce e o senhor Choquehuanca (David, indígena, candidato a vice da frente socialista) ganharam a eleição. Felicito os ganhadores e peço que governem pensando na Bolívia e na democracia”, reconheceu Jeanine Añez em uma mensagem no Twitter.

A súbita defesa dos princípios democráticos que a senadora expressou nas redes sociais, em nada lembra o discurso dela em 12 de novembro de 2019, quando se autoproclamou presidente interina da Bolívia após a renúncia de Morales e exibiu orgulhosa duas bíblias ao tomar o cargo. “Deus permitiu que a Bíblia voltasse a entrar no Palácio. Que Ele nos abençoe”, discursou à época.

Ao longo do último ano, a Bolívia viveu uma das maiores revoltas populares da história dos países de colonização hispânica em virtude da virada de mesa da direita que não aceitou o resultado do pleito de 2019. Para o professor de direito constitucional da PUCSP, Pedro Serrano, o levante popular indígena na Bolívia deixa uma lição para os demais países da América Latina.

Assim, o MAS deve recuperar o poder com o apoio das populações indígenas e os “votos ocultos” de uma parte da classe média que se arrependeu por ter apoiado o golpe. A resposta nas urnas foi massiva: 87% dos mais de 7 milhões de eleitores bolivianos participaram. Após o pleito, o presidente do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), Salvador Romero, afirmou que a participação foi superior à média boliviana de 80% e destacou a lisura do pleito. “A eleição foi limpa e transparente, e teve uma participação muito elevada, de 87%, apesar da pandemia”, disse em uma coletiva. “É uma das porcentagens mais altas da história democrática nacional”, frisou. A posse do novo Executivo e Legislativo deve ocorrer na primeira quinzena de novembro.

Ainda no domingo, o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, republicou a mensagem da senadora em sua conta pessoal no Twitter. A organização exerceu um papel determinante na queda do MAS e do presidente Morales ao questionar a transparência da eleição e incendiar o país com a ajuda de milicianos, policiais e militares. O candidato de direita também reconheceu a vitória de Arce. “O resultado é muito contundente, a diferença entre o primeiro e nós é ampla. Cabe a nós, como corresponde a quem acredita na democracia, reconhecer que houve um vencedor nesta eleição. É um resultado que não acreditamos que vá modificar-se”, afirmou Carlos Mesa.

Serrano: uma lição para os progressistas brasileiros

Serrano, da PUCSP: “É um resultado que confirma a necessidade de regimes democráticos na América Latina e um desestímulo a golpes como o que foi feito contra o Evo”

Foto: Reprodução

Serrano, da PUCSP: “É um resultado que confirma a necessidade de regimes democráticos na América Latina e um desestímulo a golpes como o que foi feito contra o Evo”

Foto: Reprodução

Para o advogado Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito da PUC-SP, pela qual é mestre e doutor em Direito do Estado, com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa, a virtual eleição do candidato socialista representa a pacificação do país. “Espero que seja uma pacificação na Bolívia. Teve uma situação muito tumultuada, a meu ver uma atitude golpista contra o governo do Evo Morales, e com uma participação, para falar com gentileza, no mínimo constrangedora da OEA, que tem por obrigação de um dos seus principais tratados garantir a democracia no continente acaba auxiliando na produção de um golpe de estado contra a democracia. Isso levou a uma divisão grande na sociedade boliviana. Mas agora creio que com a eleição do Arce, que se deu de forma inquestionavelmente legítima – e também não é um novo mandato do Evo, o que gerou um questionamento quanto à legitimidade da sua reeleição – creio que é um elemento de pacificação na sociedade. Caso essa pacificação se concretize é um excelente vitória para a democracia no continente”, avalia.

Para Serrano, a vitória de Arce é uma vitória da democracia no continente. “É um resultado que confirma a necessidade de regimes democráticos na América Latina e um desestímulo a golpes como o que foi feito contra o Evo”. Ele destaca ainda a mobilização popular que se seguiu à virada de mesa nas eleições bolivianas de 2019. “Outra lição importante, que aqui entre nós serve para os progressistas brasileiros é de que o que garante a democracia é o povo ativo e organizado. Isso, os progressistas brasileiros quando foram governo acho que esqueceram desse fato e se deixaram ir muito pela política institucional e abandonaram as formas mais originais de organização popular. O que houve na Bolívia é um exemplo claro: o que mantém a democracia é a organização do povo”.

Brasil paga caro pela desmobilização popular, diz Streck

"Estamos pagando um preço alto pelos erros que foram cometidos", diz Streck, da Unisinos,

Foto: Reprodução

“Estamos pagando um preço alto pelos erros que foram cometidos”, diz Streck, da Unisinos,

Foto: Reprodução

O jurista e professor de Direito Constitucional, Lênio Streck, da Unisinos, também sublinha a organização popular que levou à eleição de Arce. “A população da Bolívia deu a resposta ao golpe que foi dado no presidente Evo. Quem pagou mico foi a OEA e os países que reconheceram o governo golpista. Bem feito. Agora foi restabelecida a vontade popular”. No entanto, ele não acredita que a volta ao poder de um projeto popular naquele país possa refletir nas eleições brasileiras. “Aqui tudo é diferente. Se o apocalipse acontecer, quero estar no Brasil. Aqui ele só vai chegar anos depois. Estamos pagando um preço alto pelos erros que foram cometidos. Exemplos: os movimentos sociais foram desmobilizados; a UNE? Onde ficou? A conta vem com juros de cartão de crédito”, ironiza. Streck, um dos organizadores da coletânea O livro das suspeições – O que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?, lançado em setembro vê com ceticismo a ascensão de um governo de esquerda no Brasil. “Se for reconhecida a suspeição do Moro, talvez”.

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