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Estado tem 36 mil indígenas à espera da demarcação de terras

Violência e expropriação de terras que ocorre desde a formação do estado empurraram os remanescentes dos povos indígenas para os piores lugares do território gaúcho
Por Gilson Camargo e Igor Sperotto (fotos) / Publicado em 16 de novembro de 2023
Estado tem 36 mil indígenas à espera da demarcação de terras

Vida na aldeia se equilibra entre o trânsito pesado da rodovia e a água contaminada por agrotóxicos que ameaça saúde dos indígenas

Foto: Igor Sperotto

A expropriação de terras, o abandono e a omissão da Funai deixaram milhares de indígenas em situação fundiária indefinida. Com seus direitos territoriais constantemente violados, os verdadeiros donos da terra vivem em estado de alerta nos acampamentos improvisados à beira de rodovias ou confinados nos corredores entre áreas privadas, expostos à contaminação ambiental, às doenças e à violência de posseiros e fazendeiros

O trânsito intenso de caminhões é a ameaça mais visível entre todos os perigos que rondam as nove famílias da etnia Mbya Guarani acampadas na margem do quilômetro 133 da BR-290, em Eldorado do Sul.

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A Aldeia Pekuruty é um dos cinco acampamentos indígenas improvisados existentes ao longo da rodovia que corta o estado, de Osório a Uruguaiana

Foto: Igor Sperotto

Quem vive na Aldeia Pekuruty, um dos cinco acampamentos indígenas improvisados existentes ao longo da rodovia que corta o estado, de Osório a Uruguaiana, são remanescentes dos povos que tiveram seus territórios expropriados ao longo da formação do estado.

Dos mais de 1 milhão de indígenas, restaram pouco mais de 40 mil pessoas das etnias Kaingang (35 mil), Mbya Guarani (3 mil). Os Charruas são em torno de dez famílias, ou 50 pessoas. Com maioria vivendo em SC, os Xokleng no RS estão reduzidos a 15 famílias, ou cem pessoas, que vivem em uma retomada em São Francisco de Paula. No Rio Grande do Sul, são 24 acampamentos provisórios mantidos em condições precárias, à espera da demarcação de terras pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Essa demora e a histórica expropriação de terras que ocorre desde a formação do estado empurraram os povos indígenas para os piores lugares do território gaúcho.

O cacique e o professor

Para se chegar à Aldeia Pekuruty, é necessário aguardar por uma trégua no trânsito de carretas que passam a toda velocidade, carregadas com soja, rentes ao acostamento.

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“Eles me ensinam e com isso fazemos o trabalho educativo intercultural, visando o fortalecimento e preservação da cultura Mbya Guarani”, afirma o professor Artêmio Marques, que leciona os conteúdos básicos da escolarização indígena às crianças guarani

Foto: Igor Sperotto

Abaixo da barranca, a Escola Pecuruty, uma das 12 instituições da 12ª Coordenadoria Regional de Educação, que abrange a região de Camaquã, Eldorado do Sul, Charqueadas e Mariana Pimentel, foi reformada graças a um aporte de recursos emergenciais e a um mutirão liderado pelo cacique Estevão Garai e pelo professor Artêmio Marques.

As casas ainda mostram os estragos dos ciclones que assolaram o estado neste ano. Garai relata que a comunidade foi criada em 1994 e, atualmente, abriga cerca de 20 pessoas – sete são crianças em idade escolar.

“A água invadiu todas as casas, só se salvou a escola”, explica Marques.

Ele é professor de História e leciona em outras duas escolas indígenas na região. A aldeia é equipada com duas caixas d’água de 15 mil litros e recebe o abastecimento de caminhões da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, uma vez por mês.

Por meio de um programa estadual, explica ele, obteve recursos para instalar placas solares nos fundos da aldeia para a geração de energia. Uma rede elétrica passa em cima da comunidade indígena, mas o professor não conseguiu autorização para fazer a conversão e levar eletricidade às casas.

“Na mata que fica em uma propriedade particular atrás do acampamento, há frutas em abundância e muitas colmeias que produzem mel, mas o proprietário botou jagunços armados para vigiar a cerca”, confidencia.

Outro recurso vital para os indígenas, a água do local está contaminada. O Arroio Conde e outro córrego que cruzam o acampamento estão contaminados por metais pesados que derivam dos agrotóxicos. Pelo ar, a pulverização de agrotóxicos sobre as lavouras de arroz localizadas a 5 quilômetros joga traços de pesticidas sobre o acampamento.

“O riacho passa por dentro das lavouras e a água que chega até aqui é um caldo de venenos. Muitas vezes, as embalagens de agrotóxicos que os fazendeiros não descartam de forma adequada vêm parar na aldeia”, lamenta Marques.

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Vital e sagrada para os indígenas a água existente no acampamento nada tem de mítica: mistura traços de metais pesados e resíduos de agrotóxicos usados nas lavouras da região

Foto: Igor Sperotto

Local inseguro

Em 2020, por pressão das lideranças, o Judiciário determinou ao Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) a identificação da aldeia com placas e redutores de velocidade, porém isso não diminuiu a exposição dos indígenas aos riscos da rodovia.

“Aqui é um local inseguro”, resume Estevão. Algumas casas ficam do lado oposto da rodovia, o que obriga as crianças a andarem por quase um quilômetro pelo acostamento até a escola Pekuruty.

“Eles (o Dnit) não quiseram que a gente construísse a escola numa área que fica ao lado da BR-190. Mandaram parar”, recorda.

Uma área de 1,5 hectare que seria desapropriada pela prefeitura para a criação de uma reserva provisória mais segura, a duplicação da rodovia e até uma fazenda improdutiva pertencente a um senador da República em Eldorado do Sul são alternativas cogitadas pela liderança para o reassentamento das famílias, enquanto não sai a demarcação de uma reserva.

De acordo com Estevão, a aposta é na retomada das licitações para a duplicação do lote 1 da BR-290, porque a obra tem um Plano Básico Ambiental (PBA), elaborado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão Universitária (Fapeu), que determina o reassentamento das famílias em áreas não produtivas disponíveis no mapeamento ambiental.

Demarcações paralisadas

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Famílias Mbya Guarani da Aldeia Pekuruty, em Eldorado do Sul, aguardam desapropriação de terras e duplicação da BR-290 para retomar seus direitos territoriais

Foto: Igor Sperotto

De acordo com o Censo do IBGE de 2022, são 36 mil pessoas que vivem em situação fundiária indefinida, ou seja, seus direitos territoriais indígenas estão sendo violados de forma sistemática.

“São dezenas de comunidades Mbya Guarani, Kaingang, além de uma única área Charrua e uma retomada Xokleng”, explica o coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na Região Sul, Roberto Liebgott.

A pedido do Extra Classe, o Cimi identificou pelo menos seis grandes realidades indígenas distintas no estado. Segundo Liebgott, esses contextos se interligam e interagem constantemente.

Foram mapeadas dez reservas criadas no período do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) entre 1910 e 1970, outras 20 terras demarcadas de acordo com a Constituição Federal de 1988, e diversas áreas compradas pelo poder público para assentamentos.

A maior parte dos territórios que abrigam indígenas no estado é de terras com demarcações paralisadas. O Cimi contou mais de 50 no RS.

Nesse contexto, até áreas que pertencem ao poder público estão embargadas por ações judiciais de fazendeiros e posseiros, como é o caso do Acampamento Estiva – Capão da Porteira, em Viamão. A reserva de sete hectares cedida pelo governo do estado tem 25 famílias Mbya Guarani.

No Salto do Jacuí, 36 famílias Kaingang estão ameaçadas de despejo devido a uma decisão de primeira instância do Judiciário local, que concedeu reintegração de posse da área à empresa CEEE GE. Vinculada à CSN, a empresa integra o consórcio que comprou a estatal de energia e explora madeira e minérios e aumentou a pressão sobre os indígenas depois da privatização.

Conforme o Cimi, mais de mil famílias vivem em contextos urbanos, a exemplo da Terra Kaingang Morro do Osso e Acampamento Passo Grande da Forquilha, em Porto Alegre; presentes também em Passo Fundo, Erechim, Bento Gonçalves, Rio Grande, Santo Ângelo, Santa Maria.

As terras reservadas foram criadas ainda no período do SPI, destinadas, geralmente, ao povo Kaingang, mas com pequenos espaços reservados para aldeias Guarani.

O estado tem, ainda, reservas demarcadas em Nonoai, Guarita, Ligeiro, Carreteiro, Charrua, Cacique Doble.

Além dessas terras indígenas, há territórios que foram transformados em áreas de ocupação tradicionais, a exemplo de Votouro, Ventara, Serrinha, Inhacorá, porém com seus limites reduzidos em quase 80%.

“Em praticamente todas as áreas reservadas Kaingang se introduziu a prática dos arrendamentos de terras, que se tornou ilegal depois da promulgação da Constituição Federal de 1988. Em geral, os arrendamentos excluem as populações de terem acesso à terra, bem como inviabilizam as práticas de produção de economias tradicionais próprias de cada comunidade e povo”, ressalta Liebgott.

Ele lembra que o processo de dizimação dos povos indígenas pela colonização europeia foi mais intenso nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, onde os territórios foram fatiados pelos exércitos espanhóis e portugueses em 1756, a exemplo dos Sete Povos das Missões.

“Depois, a perseguição, a escravização e a matança dos povos se deram a partir de várias frentes de expansão e ocupação das terras, pelos bandeirantes, da imigração, colonização europeia e o consequente fatiamento e divisão dos territórios”, enumera o missionário.

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