MOVIMENTO

A cultura do trabalho voluntário precisa ser permanente

Ações da sociedade civil fazem a diferença no socorro e amparo aos atingidos pelas enchentes e diante da falta de articulação das autoridades em momentos de crise humanitária
Por Silvia Marcuzzo / Publicado em 7 de maio de 2024
A cultura do trabalho voluntário precisa ser permanente

Foto: Rodrigo Ziebell/ Divulgação

Trabalho voluntário mobiliza milhares de pessoas em todas as frentes de resgate às vítimas da enchente no RS

Foto: Rodrigo Ziebell/ Divulgação

Em meio ao caos generalizado que se instalou com o avanço das enchentes trabalhadores voluntários colocaram em movimento iniciativas para ajudar as pessoas a superar esse momento em que absolutamente tudo está fora de ordem, no pior crise climática da história do Rio Grande do Sul. As ações de pessoas que deixam suas atividades de lado para ajudar o próximo estão por toda a parte. Noventa e nove vírgula nove por cento das pessoas estão ajudando, fazendo alguma coisa para melhorar a situação”, ilustra Natália Soares, presidente do Instituto ECOA. No 1% que não aparece na conta estão gente gananciosa, comerciantes que se aproveitam de uma situação de emergência para lucrar e assaltantes, acrescenta, lembrando que tem amigos que foram assaltados por falsos socorristas que entraram em ação pilotando jet-ski na área alagada do 4º Distrito de Porto Alegre.

Apesar dos aproveitadores, a solidariedade prevalece. As mais diversas ações de voluntários – de artistas a esportistas e celebridades, mas principalmente de gente do povo que não se contenta em ficar de braços cruzados – fazem a diferença por todo o estado. Nos grupos de whattsapp há muita oferta de espaços, de comida, de profissionais da área de saúde que se disponibilizam para atenuar o sofrimento das pessoas que tiveram que sair de casa às pressas. Nesse momento, há uma ausência nítida da falta de articulação das autoridades em lidar com o contexto. Então, as iniciativas da sociedade civil se revelam como essenciais para contornar os problemas. Junto com outras mulheres, Natália está reaproveitando tecidos de sombrinhas para fazer capas, sacos de dormir para pessoas que estão na rua.

A cultura do trabalho voluntário precisa ser permanente

Foto: Divulgação

Tânia Pires com um painel solar na sede do Ciu Poa, onde é diretora e atua com mudanças climáticas desde 2013

Foto: Divulgação

Tânia Pires, fundadora do Centro de Inteligência Urbana (Ciupoa), localizado no Morro da Cruz, desde 2011, está envolvida com ações de voluntariado há 23 anos. Ela tem uma visão diferente do senso comum que prevalece na cobertura da imprensa. O foco do CIU Poa é atuar em frentes onde há interface com as mudanças climáticas, a partir de uma visão do local.

“É necessário que se faça tudo que está sendo feito. Mas não temos a cultura no Brasil do voluntário que, junto com ambientalistas, cientistas, trabalha pela prevenção”, analisa. Há uma grande diferença entre esse tipo de trabalho voluntário e aquele que age como bombeiro, o que ela chama de voluntário “pipoca”. “Quando o incêndio apaga, ele para”, diz, citando o exemplo da pandemia. “Quando as lojas abriram, foram todos consumir, deixaram de ser voluntários, contribuindo para agravar as consequências da pandemia, né?”.

Tânia entende que essa cultura do trabalho voluntário precisa ser fomentada, pois o momento exige que se trabalhe por uma causa, que também ajude no pós-desastre. “É preciso gente que saiba antecipar, se preparar, verificando o que está sendo feito para enfrentar um próximo desastre”.

Ela está falando de NUPDEC, sigla de Núcleo de Defesa e Proteção Civil. Segundo Tânia, a própria comunidade precisa cuidar, estar ciente dos riscos que corre. No entanto, ela revela que essa prática não existe em Porto Alegre. “Não existe Defesa Civil que atue com prevenção. Existem duas pessoas atrás de uma mesinha. Não existe recurso para isso. Pode ser que exista plano, mas adianta ter esse plano se não tem gente para executar?” indaga.

Trabalho voluntário

Foto: Luís André Pinto/ Palácio Piratini

A diretora de escola infantil Patrícia Schwarz está coordenando grupo de voluntários em Roca Sales

Foto: Luís André Pinto/ Palácio Piratini

Na sexta-feira, 3 de maio, pior momento da tragédia ambiental que se abatia sobre o estado, a servidora pública Aline Müller, ao invés de se recolher na sua casa depois do expediente resolveu ir para a Usina do Gasômetro para ajudar a acolher as pessoas que estavam sendo resgatadas das ilhas de Porto Alegre. Depois de passar o final de semana organizando o local com a ajuda de uma amiga e de um grupo de skatistas para receber os resgatados, ela falou ao Extra Classe no domingo, depois das 20h.

“Foi desesperador, gente com hipotermia, nós sem banheiro, abaixo de chuva”, relatou. Com o passar do tempo, centenas de pessoas da comunidade se uniram para tentar dar conta do que estava acontecendo.

“Começamos organizar tudo, mesa, lona, começou a chegar roupa, muitas pessoas resgatadas, não tem como estimar quantos atendemos, mais de mil pessoas nos três dias. Na sexta, era tudo muito precário, tudo no improviso, recebíamos as pessoas no escuro”. Ela observa que depois que o prefeito Sebastião Melo e o governador Eduardo Leite chegaram para dar entrevistas é que foi instalado um gerador com luz.

De sexta a domingo, a alimentação foi à base de sanduíches. No domingo, um grupo chegou com fogareiro e fez comida. Ela acredita que mais de uma centena de pessoas se envolveram nos atendimentos.  “Precisou de gente pra ficar nos três turnos, fiz de tudo, tudo que precisava fazer”.

Ela comenta que um rapaz de uns 17 ano chegou em estado de choque. Sem conseguir falar. Sem bateria no celular. “Nisso, achei um casal que auxiliou o moço, que não sabia para onde ir. Eles levaram o rapaz para casa deles”. Ela conta de depois de um tempo, os pais do jovem foram resgatados, mas a avó não quis sair de casa. Ficou no sótão, com seus animais de estimação.

“Se não fosse a solidariedade, o amor pelo próximo, nada teria acontecido”, constata Aline. A Usina acabou virando ponto de coleta de doações. “Agora estou abastecida, estava muito triste na quinta-feira, numa ansiedade só, vendo a destruição. Agora estou me sentindo viva. Mesmo com toda tristeza, ainda dá pra ter esperança”.

Reconstrução

Foto: Luís André Pinto/ Palácio Piratini

O eletricista Ronaldo de Souza viajou 175 quilômetros para prestar serviço voluntário em Roca Sales

Foto: Luís André Pinto/ Palácio Piratini

Uma rede de solidariedade formada por mais de 4 mil voluntários atua desde o final de semana na reconstrução de Roca Sales e Muçum, municípios gaúchos devastados pelas cheias. Cadastrada por uma força-tarefa das prefeituras e do governo estadual, a mão de obra conta com voluntários de mais de 20 municípios gaúchos.

Em Roca Sales as equipes são deslocadas, com apoio da Brigada Militar, para um dos nove pontos mais críticos da cidade, locais que foram mapeados pelas forças de segurança do Estado e pelo Exército. No sábado, a força-tarefa voluntária recebeu o reforço de 30 eletricistas. Os quatro quilômetros de uma área urbana foi destruída pelas cheias.

“Estamos com um bom número de pessoas empenhadas no serviço de limpeza e serviços gerais. Na atual fase de reconstrução, a comunidade está precisando de serviços especializados, para ajudar nos pequenos reparos dos imóveis residenciais e comerciais”, afirma Patrícia Schwartz, diretora da escola infantil Arco-Íris, que coordena o grupo de voluntários.

Além do apoio logístico, a força-tarefa fornece alimentação gratuita ao grupo de voluntários. A distribuição das refeições parte de duas cozinhas comunitárias montadas em espaços da prefeitura, onde também são servidas refeições para as famílias desalojadas. A mão de obra solidária também conduz os locais de preparo dos alimentos.

O eletricista Ronaldo de Souza, 25 anos, morador de Lagos dos Três Cantos, a 175 quilômetros de Roca Sales, decidiu se juntar à mobilização solidária. Funcionário do ramo industrial, ele diz que a necessidade emergencial é de revisão da rede elétrica das residências. Com a enxurrada, há muitos moradores com tomadas e chuveiros elétricos comprometidos. “Os reparos elétricos são fundamentais para evitar episódios de curto-circuito, além de fornecer energia elétrica para o uso de máquinas e equipamentos de higiene, como máquina de lava-jato”, explica.

Cozinha solidária

Nesta terça-feira, 7, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) iniciou as atividades de uma cozinha solidária no assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, para atender a população de Eldorado do Sul, um dos municípios da Região Metropolitana mais impactados pela enchente. O objetivo é produzir 1,5 mil marmitas para a população desabrigada pela enchente histórica que atinge o estado desde a última semana.

O movimento também iniciou uma campanha de solidariedade para arrecadar fundos para ações de apoio às famílias atingidas nos diversos municípios gaúchos.

Entre elas, estão cerca de 420 famílias do próprio MST que tiveram de sair às pressas de suas casas. A força das águas deixou submersos cinco assentamentos do movimento na Região Metropolitana de Porto Alegre.

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