OPINIÃO

O que quer dizer o não ler de uma criança

Maria Helena Bagatini / Publicado em 7 de outubro de 1997

A criança que tem dificuldade de leitura, que não lê dentro dos padrões da Instituição, é considerada “imatura” para aprender e que ainda não está “pronta” para aprendizagem. E quando não aprende as aquisições básicas de ler, escrever e falar, falha na escola e tende a ser isolada da sociedade.

Muitas vezes, essa criança apesar de não ler fluentemente, consegue resolver cálculos matemáticos e ir adiante na sua escolaridade, com ritmo mais lento, é claro, mas parece que algo a bloqueia, que a sua inteligência esta “aprisionada”. O que essa criança quer revelar com essa dificuldade? Pode ler corretamente placas de rua, títulos de jornais e revistas, porém, na leitura de livros apresenta um leitura truncada, fragmentada, com omissões, fraturando completamente o texto e impedindo a com-preensão do seu significado.

Sabemos o quanto a leitura restringe o mundo das pessoas e o quanto a falta dela mantém submissas as pessoas. O que faz uma criança não desejar ler? Ou ler mecanicamente, o que é pior, pois dá uma falsa idéia de leitura.

O ato de ler não é um ato mecânico, de reconhecimento de letras, decodificação de palavras, vai além. É preciso encontrar sentido, compreender o que quer dizer, o que há por trás das palavras, é ser capaz de desprender-se por um tempo, para acompanhar o pensamento do outro. É ampliar seu conhecimento, ser sujeito, porque a leitura é condutora do desejo de aprender e significa: “fazer a leitura de gestos de uma situação”, “ler o olhar de alguém”, “ler o tempo”, “ler o espaço”, enfim, ler o mundo.

Assim, como toda e qualquer aprendizagem, a leitura também significa uma conquista de autonomia, permite ampliar horizontes, implica comprometer-se e também correr riscos. Porque inconscientemente, talvez seja melhor não entender(ler), porque pode trazer novas exigências, sair da passividade, enfrentar uma situação e isso pode causar novas frustrações diante da realidade.

A maioria das crianças aprende a ler, mais ou menos bem, algumas mais cedo, outras mais tarde. Mas, ainda é uma pequena parte delas que gosta de ler, que sente prazer na leitura. Na maioria dos casos, a leitura é motivo de preocupação para pais e professores. Com certeza, para a maioria as primeiras experiências foram simples reconhecimento de letras, palavras e frase vazias, sem sentido algum.

Uma criança que domina a técnica da leitura, que lê fluentemente sem erros, não garante que esteja tudo bem, pois pode ter adquirido as habilidades exigidas e por outro lado, pode achar a experiência da leitura sem sentido, evitando-a sempre que possível. E, como um adulto, ela pode ler corretamente os títulos de jornais e revistas, as placas de rua, etc… Provavelmente, essa criança quando solicitada a ler aceitou aquilo que o texto dizia, aprendeu a submeter-se passivamente ao domínio da palavra impressa e a leitura se transformou, para ela, em algo não envolvente.

Para adultos, de modo geral, a criança erra quando não lê corretamente a palavra impressa nos livros. Para o professor, o erro da leitura pode significar incompetência, desatenção, desinteresse e inexperiência. Para a criança, contudo, o erro não tem o mesmo significado, uma vez que representa um modo diferente de realizar algo.

A dificuldade na leitura trata-se também de algo inconsciente, de sentimentos tão fortes que as crianças não podem evitar e que aparece na leitura. A criança não pode dizer ao professor: “Aquilo que acabo de ler me trouxe à mente certas dificuldades que estou tendo com a família ou comigo mesma”. Devo tratar delas em primeiro lugar, antes de prosseguir lendo.

Ver essa dificuldade de leitura como ignorância, independente se for por falta de atenção, habilidade, etc…, tem muitas conseqüências más. Nesse caso, a criança aceita seu fracasso e acredita ser mau aluno e passa a se identificar com essa imagem negativa. De fato, os constantes fracassos, a continuidade dos erros, pode ter conseqüências desastrosas, principalmente para a criança insegura, o que contribui para agravar tal insegurança. Quanto mais insegura for a criança, mais inclinada estará a desistir de aprender, achando sempre tudo errado o que faz.

Na aprendizagem normal há uma forma integrada da criança com o seu pensar, sentir, falar e agir. O não aprender nos diz que algo vai mal com ela ou com aqueles com que a criança convive. O não ler de uma criança também tem um sentido inconsciente e é uma manifestação diferente da criança dizer que algo a preocupa no momento.

O ambiente onde a criança vive é um fator muito importante para o seu desenvolvimento. Esse desenvolvimento dever ser respeitado e não atropelado pela ansiedade dos pais.

Há de se saber para quem é importante o desempenho dessa criança: para a criança ou para os pais? Se cada criança tem seu ritmo próprio de desenvolvimento, vai depender muita para a sua aprendizagem o desejo de aprender.

Quando a aprendizagem da leitura é experiência através do desejo, aprender a ler não se torna mais uma tarefa difícil. Porque a leitura não é algo que pertença só ao consciente, mas também ao inconsciente.

A aprendizagem da leitura tem que ser uma atividade desejante e os distúrbios que passam a ocorrer nessa aquisição necessitam ser considerado dentro de uma abordagem psicopedagógica mais abrangente, que leve em conta, além dos aspectos cognitivos e instrumentais, a dimensão inconsciente da aprendizagem.

* Maria Helena Bagatini é psicopedagoga e trabalha na Clínica Crescer, Passo Fundo.

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