OPINIÃO

A vida mudou. E nós?

Publicado em 6 de abril de 1998

Enquanto foi considerada uma doença de homossexuais e de viciados, muitos respiravam aliviados, imaginando-se imunes, distantes da desgraça da Aids. Não foi necessário muito tempo para que este engano, carregado de preconceito e ignorância, se desfizesse. Como dizia Cazuza – uma das personalidades públicas atingidas pelo HIV -, a cara da morte está viva. Mais do que isso, está bem perto de todos nós indistintamente, já decidiu ficar e não dá trégua.

Betinho, o sociólogo Herbet de Souza, o cidadão brasileiro que lutou de maneira tenaz e estóica pela solidariedade contra as mazelas mais tristes deste país estranhamente alegre, tornou-se a vítima-símbolo da negligência dos bancos de sangue que foram veículo de contaminação de centenas de hemofílicos como ele. Mas nem mesmo a luta heróica de um cidadão idôneo como Betinho foi bastante para convencer a sociedade brasileira de que a Aids não recuará enquanto não for enfrentada de maneira clara, inteligente e humana.

Na verdade, ignorar o fato de que não há outra alternativa senão conviver e prevenir a doença, significa colaborar com a sua proliferação, representa uma espécie de cumplicidade criminosa. E, em certa perspectiva, todos nós, simples cidadãos e autoridades públicas, temos desempenhado este papel torpe. Nós, porque, freqüentemente, nos omitimos diante de gestos comuns, porque renunciamos à cobrança severa das obrigações do Estado com a saúde pública e, este, pela ineficácia de suas campanhas de esclarecimento, tantas vezes limitadas por valores morais que se revelam imorais quando secundarizam um valor e um direito superior como é a vida.

Apenas a sigla da Síndrome de Deficiência Imunológica Adquirida causa pânico. Não é para menos. Além da transmissão direta pelo sangue, sua outra forma de contaminação se dá pelo esperma e as secreções vaginais, quer dizer, envolve a sexualidade, digamos assim, um atributo essencial para a vitalidade e a saúde humana em todas as dimensões.

Os esforços no plano científico, a militância de ONGs e dos próprios aidéticos têm conseguido resultados extraordinários frente a batalha contra o vírus HIV, que provoca a Aids e a incidência das chamadas moléstias oportunistas. Mas ela continua incontrolável, atingindo indiscriminadamente pessoas de todas as idades e condições sócio-econômicas. Informes da Organização Mundial da Saúde e de outras instituições internacionais como a ONU, apresentam estatísticas que se tornam assombrosas quando os números se referem a recém-nascidos e a jovens.

Apesar disso, um espaço imprescindível na formação da cidadania e da sociabilidade como a escola, ainda está a reproduzir a negligência social em relação a Aids, em relação à vida. A reportagem de capa deste Extra Classe constata um quadro de pouco alento que não se justifica. Afinal, a Aids surgiu no Brasil há cerca de 15 anos. Portanto, já era tempo suficiente para que todos tomassem consciência da gravidade do problema e mudassem de conduta.

Porque, mais devastador do que a própria Aids tem sido um poderoso coquetel que combina a um só tempo ignorância, preconceito e indiferença. O que se verifica, no entanto, e o que é preciso que todos saibam de uma vez por todas é que, definitivamente, a Aids não é um problema dos aidéticos ou portadores do HIV, é uma questão social que diz respeito a todos e a cada um individualmente.

Se o apelo à solidariedade e à responsabilidade social não são o bastante, o compromisso deve ser assumido pelo menos porque, a Aids não escolhe suas vítimas segundo algum critério. Não se trata de um julgamento ou de uma condenação, ela é, absolutamente, uma ameaça que mudou a vida neste final de século. Enquanto fingirmos que nada aconteceu, ela continuará avançando mais e mais. Só nos resta também mudar.

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