OPINIÃO

1968: os desejos que permanecem

Mauro Gaglietti / Publicado em 2 de junho de 1998

A imagem que se construiu de 1968 está relacionada às barricadas dos desejos, da mudança dos hábitos, dos costumes, do movimento hippie, da queima dos sutiãs, da era de Aquarius, dos festivais de música, dos protestos contra a Guerra dos EUA no Vietnã, do amor livre, da maconha e do LSD. Esses são os elementos que povoam, de forma misturada, o nosso imaginário.

É de 1968 a lembrança da passeata dos 100 mil em protesto pela morte do estudante. Édson Luís Lima Souto havia sido assassinado, no restaurante Calabouço, por tropas policiais. Os assassinatos de estudantes e os espancamentos de artistas eram muito freqüentes. A adaptação para o teatro de uma canção de Chico Buarque, Roda Viva, deixou o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) irritado com o diretor da peça, José Celso Martinez Corrêa, a tal ponto que os jovens artistas que integravam o elenco, entre os quais, Marieta Severo e Marília Pera, foram sequestrados e espancados. Bombas eram colocadas nos teatros em que a peça era encenada e, em Porto Alegre, após o espetáculo, os atores foram obrigados a andar nus na calçada do Teatro Leopoldina.

No final de setembro, mais de mil universitários foram presos ao realizarem o XXX Congresso da UNE, em Ibiúna. O setor mais à direita do governo militar pressionava o presidente Costa e Silva para “aprofundar a revolução de 64”, o que viria a concretizar-se com a instituição do AI-5, meses após o famoso discurso do deputado Márcio Moreira Alves, que responsabilizava os militares pela violência contra os estudantes.

Na França, os jovens não lutavam contra uma ditadura militar, suas barricadas e pedras levantavam-se contra a sociedade de consumo. A partir dos acontecimentos de Maio de 1968, em Paris, o discurso libertário ganhou o mundo. Marcuse, Debord, Débray e Che Guevara eram muito lidos na Europa Ocidental e na América Latina. Em particular, o livro de Guy Debord, A sociedade do espetáculo, publicado um ano antes da eclosão do movimento, foi a mais importante obra teórica a influenciar decisivamente os setores radicais do movimento. A repercussão da obra entre os jovens deveu-se à análise crítica demolidora que realizou, a partir do Capital de Marx, do moderno capitalismo e de sua sociedade do consumo.

Debord explica que o “espetáculo” vai muito além da onipresença dos meios de comunicação de massa, que representam somente o seu aspecto mais superficial. É uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real. A realidade torna-se uma imagem, e as imagens tornam-se realidade. A unidade que falta à vida recupera-se no plano da imagem. Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela degradação do ser em ter, na “sociedade do espetáculo” chega-se ao reinado soberano do aparecer. As relações entre os homens já não são mediadas apenas pelas coisas, como no fetichismo da mercadoria ao qual Marx referia-se, mas também pelas imagens.

Ainda é cedo para afirmar algo sobre as comemorações em torno dos 30 anos de Maio de 68. O que pode estar ocorrendo é um fenômeno semelhante ao da passagem dos 30 anos da morte de Che Guevara em 1997, pois, a Revolução Cubana e, em particular, a figura de Ernesto Che Guevara foram lembradas em 1968, nas barricadas de Paris e nas passeatas no Brasil. Além disso, tanto a participação de Che Guevara na Revolução Cubana, quanto o movimento de Maio de 1968, são simbolos da luta humanista e libertária. Pois, a greve geral de 10 milhões de operários na França e das passeatas e barricadas dos estudantes foi o maior movimento social desse final de século, em oposição ao modo de produção capitalista. Naquele ano todas as estruturas foram questionadas. Tanto o sitema capitalista quanto o sistema soviético foram duramente criticados. A luta por uma sociedade emancipada foi a principal bandeira dos revolucionários de 68.

Hoje, com exceção da guerrilha colombiana, da organização dos trabalhadores sem-terra, no Brasil, e da ação do Exército Popular Zapatista, no México, os demais movimentos sociais organizados deparam-se com inúmeras dificuldades no sentido de se manterem ativos. Soma-se a isso o fato de que os partidos políticos passam por uma transformação, em muitos casos vindo a constituir-se, na prática, em verdadeiras “agências de conquista de cargos”. Contudo, as motivações que deram origem aos movimentos sociais e à fundação dos partidos de esquerda não desapareceram: persistem entre as populações excluídas a exigência de acesso à saúde, educação, moradia, emprego e cultura.

Se considerarmos o desgaste da imagem de Fidel, Mao e Stalin, bem como o fim dos modelos de socialismo enquanto referência política para os socialistas, percebemos que se tornou difícil sustentar a prática militante de esquerda após a queda do Muro de Berlim, e a extinção da URSS, ou então, mais recentemente, diante dos problemas enfrentados pela social-democracia que derrotou os governos neoliberais na Europa. Ainda que possa parecer paradoxal, por trás dessas imagens que apontam para a ausência de futuro, em 1997 reapareceu a efígie do herói revolucionário Che Guevara, nos vários eventos que assinalaram a passagem de sua morte. Talvez esse retorno não seja apenas um último adeus melancólico ao comunismo, mas um sinal de caráter prospectivo, que, no mundo do espetáculo, ilumina a falta, fazendo as luzes incidirem sobre um conjunto de forças econômicas e governamentais que se esqueceram de “globalizar” os direitos humanos.

O silencioso protesto dos injustiçados, que nos fala Alain Touraine, é a causa provável da permanência da imagem de Che Guevara, nesse final de século. Trata-se da paciente resistência ativa das populações oprimidas, que, frente ao massacre social cometido pela ditadura das redes financeiras, querem ter o direito de ter direitos. O reencontro com o rosto de Che talvez tenha sido, para muitos, o reencontro consigo mesmos, com seus próprios sonhos furtados. É possível que os eventos destinados a assinalar o trigésimo aniversário de Maio de 68 também adquiram tal conotação, reencenando, por outra via, os dramas cotidianos da população brasileira e recordando as promessas que se afastaram das suas mãos.

* Mauro Gaglietti é professor de Ciência Política na Universidade de Cruz Alta. Cruz Alta, RS.

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