OPINIÃO

A ciência e a literatura

CÍCERO GALENO LOPES / Publicado em 29 de novembro de 1998

A partir da emergência do Positivismo, no século passado, a ciência assumiu o lugar do mito antigo. A ciência passou a ser uma espécie de palavra sagrada, como foi o mito antigo e como ainda outros; também assim, adquiriu a aura de limitada a mentes privilegiadas, consagrada a uma de deus infalível; em conseqüência se passou a negar concepção de ciência a todo conhecimento fora dos padrões previstos pelo cientificismo de época. Até hoje há quem pense assim.

Em decorrência disso, a literatura foi alijada a segundo ou terceiro plano. O ficcional e o poético passaram a ser considerados como contrários à sabedoria, porque a sabedoria só poderia ser entendida dentro e a partir da ciência concebida como a suprema conquista da humanidade. Desse modo, a literatura, que inclui a visão da população marginalizada pelo conhecimento acadêmico, foi relegada a uma espécie de diletantismo sem conseqüência.

O que é a literatura, no entanto, senão uma forma de conhecimento, tão digna como qualquer outra forma. A literatura é uma forma de reflexão sobre o mundo. Acima de tudo, a literatura não propõe a verdade, mas possibilidades de verdade. Vale dizer: é um jeito de conhecer o mundo, maneira de procurar entendê-lo. Como arte, também procura modificá-lo, aspecto que limita a ciência. A diferença clássica da literatura com a relação à ciência sacralizada é a que se estabelece pelo fato de a literatura não pretender comprovar o que diz. A literatura é forma de conhecimento que discute possibilidades e probabilidades, sustentada pelo discurso que lhe é característico: o discurso variável compatível com o ideário e o universo cultural textual que procura tatear os fenômenos e fatos do mundo. Essas são reconhecidamente atitudes características da capacidade cognitiva humana. Nalguns casos, a literatura e a ciência aprofundam essa busca. Casos há, inclusive, em que a
literatura antecipa as descobertas científicas. Outros há em que a literatura revisa – como ocorre no momento presente da literatura brasileira – o que algumas ciências consideraram por tempos como intocáveis. A própria ciência prestigiada atualmente se fixa nessa preocupação, isto é, que científico só pode ser o fato ou fenômeno que possa ser retomado, reconsiderado, reexaminado e nunca está definitivamente acabado. Daí por que a diferença mais pronunciada como distintiva da ciência canonizada esbarra num traço de similitude entre literatura e ciência.

A voz tida como categórica e às vezes como monológica da ciência não é, entretanto, categórica nem monológica, porque toda ciência se caracteriza pela continuidade e permanente revisão. Essas tendências estão sempre presentes na literatura. Sobre ambas, literatura e ciência, reina o tempo, que permite estabelecer alternativas e optar por uma ou algumas como mais prováveis, em determinado momento histórico.

Em resumo, todo conhecimento humano, ainda que precariamente sistemático, não pode ser desprezado, sob pena de se tomar atitude flagrantemente anticientífica. As alternativas menos consideradas podem ser as mais consideráveis e prováveis. A realização dessas alternativas pode representar a surpresa da descoberta, que alguns ainda denominam invenção. Inventar mesmo o que é possível, se o mundo pré-existe ao homem? Evolução significa modificação, e isso o tempo também faz, e isso a vida faz, independente da pretensão humana. Afinal, que seria a vida sem a arte, quer arquitetura, dramaturgia ou literatura? É bom lembrar que houve um tempo em que os homens entendiam como verdades absolutas que o globo terrestre era um disco rodeado de abismos e que o sol girava ao redor da Terra.

Além do mais, a vaidade exacerbada é sempre atitude incompatível com a ciência e com a arte.

* Cícero Galeno Lopes, doutor em Letras, é professor titular no Centro Educacional La Salle de Ensino
Superior

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