OPINIÃO

Sobre o cinismo jurídico

Por Augusto Jobim do Amaral* / Publicado em 13 de setembro de 2017

Farsa e ridículo talvez tenham algo em comum: o exercício cínico. Sobre ele nada cabe de (auto)crítica, pois sabem muito bem o que fazem, mas ainda assim o fazem. Contra isso, há a ironia ou mesmo o sarcasmo e seu esforço de expor suas frases ideológicas ao ridículo, colocando em manifesto sua violência e suas brutais pretensões de poder. Que sobre a capa da universal imparcialidade posta como ideologia oficial seja ex-posta a nada ingênua perversão de suas razões particulares.

O roteiro de punitivismo dinamiza um autoritarismo cool, com ares de serenidade. A pornografia penal terá um duplo cenário: para a costumeira clientela do sistema penal, um vasto cardápio de programação televisionada na rotina policialesca “em ação”, entretanto, para a casta privilegiada, a ode punitiva deverá ter outra roupagem, afinal deve ser retratada através de capítulos diários como qualquer enredo de novela e finamente contornados por “delações” vazadas e veiculadas por veículos da grande mídia anêmica de democracia. Tudo amparado, enfim, por decisões judiciais “imparciais”. Portanto, a um governo judicial inquisitivo não cessará em demonstrar suas reconfigurações. Que o discurso crítico, por sua parte, também não ignore sua responsabilidade em antever ambas implicações para além de sua arrogância desastrosa.

Adiante da contumaz expressão cínica “não vem ao caso” do imparcial juiz de Curitiba, o que poderia ser dito sobre a atual conjuntura político-criminal espelhada na sentença que condena um ex-presidente da República de maneira descabida? Mais um instante triste do profundo caldo cultural autoritário que experimentamos por tradição no Brasil foi dado no dia 12.07.2017, reatualizado por um racismo de classe, mas que nada dista da rotina naturalizada de violências seletivas, institucionalizadas e amparada categoricamente, não apenas por largo espectro midiático, mas por atores de Estado que ganharam protagonismo inédito e que acabam por orientar a persecução criminal.

Em suma, se sobre a hipótese da corrupção deveria haver a comprovação do recebimento de uma vantagem (a propriedade do imóvel) como contrapartida sobre o contrato (CONEST/RNEST) com a Petrobras, porque não se argumenta nada sobre isto na larga sentença? E se, no sentido da estonteante elucubração judicial, o crime de corrupção “não depende da prática de ofício” e “que não há necessidade de uma determinação precisa dele”, o que resta da legalidade penal para uma autoridade judicial como esta? E se a condenação de “lavagem”, através da “ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento (…) e das reformas realizadas”, ou seja, dotar o capital ilícito de aparente licitude, como comprová-la sem ter havido a incorporação dos bens ao patrimônio de Lula? Ainda, sob certo ponto até risível: como faria sentido conceber a lavagem para algo que permanece oculto? Obviamente, quanto menos isto for lembrado melhor, quiçá por isso os cinco parágrafos resguardados à análise da tese defensiva.

Ao fim, “para evitar certos traumas”, agora da nossa parte, sem dúvida alguma podemos deixar de afirmar perfeita coerência neste lawfare. Nada mais evidente que a completa correlação da acusação com a sentença prolatada: para um infantil esquema informático inicial redutor de complexidade (quer por falta de elementos hábeis a amparar a pretensão acusatória, quer por falta de preparo de ordem técnico-intelectual), nada melhor que uma sentença que cinicamente o ecoe.

*Professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Ciências Criminais da PUCRS.

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