OPINIÃO

Destacamento Blood

Por Marcos Rolim / Publicado em 9 de julho de 2020

Destacamento Blood

Reprodução/Netflix

Reprodução/Netflix

Bloods foi um termo comum usado por soldados negros na guerra do Vietnã, algo como “camaradas”. Os quatro amigos se consideram, assim, como membros de uma irmandade marcada pelos horrores de uma guerra que nunca foi, de fato, sua

Spike Lee é um dos mais interessantes diretores de cinema e documentaristas já há muitos anos. Nascido no sul dos Estados Unidos, em Atlanta, capital da Geórgia, e morador do Brooklin, em Nova Iorque, conheceu desde sempre o que é ser negro em um país racista. Graças ao talento de diretores como ele, e de roteiristas e atores e atrizes negras, a temática racial chegou às telas de Hollywood, o que assinala importante conquista cultural.

Com Infiltrado na Klan, ele produziu uma obra prima, o que, muitas vezes, agrega o risco de filmes posteriores do mesmo mestre serem sempre comparados e tidos como “bons, mas não tão bons quanto…”  Bem, mas aí surge Destacamento Blood (Da 5 Bloods) e o que temos é outra obra extraordinária. O filme está disponível na Netflix, dura 2 horas e 34 minutos e é imperdível.

Sem spoilers, pode-se dizer que o enredo é simples. Quatro negros americanos Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Melvin (Isiah Whitlock Jr) e Eddie (Norm Lewis), veteranos da guerra do Vietnã, voltam a Saigon para uma dupla missão: encontrar a ossada de seu líder e, ao mesmo tempo, localizar um tesouro. Bloods foi um termo comum usado por soldados negros na guerra do Vietnã, algo como “camaradas”. Os quatro amigos se consideram, assim, como membros de uma irmandade marcada pelos horrores de uma guerra que nunca foi, de fato, sua.

A fotografia típica dos filmes de Spike Lee faz com que cada cena se pareça a uma pintura vibrante. Essa marca e o contraste produzido com episódios reais da guerra do Vietnã, em preto e branco, produzem um forte impacto. O filme faz “citações” de Apocalypse Now, de Coppola, o que é até lembrado didaticamente com o nome do bar onde os bloods se encontram.

Aos poucos, Lee vai nos permitindo compreender as trajetórias dos personagens, seus desejos, suas dores, suas contradições. Os quatro do destacamento são engraçados e patéticos, conscientes e perturbados, pacíficos e violentos. As aporias se prolongam e fazem do filme uma homenagem à complexidade humana.

Delroy George Lindo (Paul), um ator inglês que já fez personagens de destaque em outros filmes de Spike Lee, rouba a cena. Seu desempenho nesse filme é, de fato, algo memorável. Ele é o mais “guerreiro”, o mais ligado emocionalmente a “Stormin” Norman, personagem do ótimo Chadwick Boseman (Pantera Negra), o líder do grupo que morreu e que inspirava os demais na luta antirracista.

Paul é, também, uma pessoa em sofrimento mental que fez a opção de não se preocupar com os demais, porque, afinal, ele “já se ferrou tanto” e, agora, é a vez de pensar em si mesmo. Paul votou em Trump e vai ao Vietnã com o boné Make American Great Again. É o emblema das opções trágicas de uma época, mas também o personagem mais interessante e, ao mesmo tempo, o mais difícil de se lidar e compreender.

Os negros do filme, aliás, são personagens complexos e não blocos monolíticos ou aquele tipo de caricatura que só cabe em molduras ideológicas. São protagonistas que subvertem a tendência aos estereótipos com os quais, frequentemente, são retratados em filmes dirigidos por brancos.

Ao longo da história, temos também alguns depoimentos históricos e a reconstrução da locutora da rádio Voz do Vietnã, Hanoi Hannah (papel desempenhado por Ngo Thanh Van), cuja voz abalava a confiança dos soldados norte-americanos. É ela, por exemplo, que lembra que os negros são 11% da população dos EUA, mas 32% das tropas do exército americano no Vietnã, um indicador que, atualmente, incluiríamos como evidência de racismo estrutural. Sobre o Vietnã, a propósito, depois de ler o ótimo artigo de Laísa Trojaike , me dei conta que o filme poderia ter oferecido um panorama mais real sobre o país e seu povo.

Os vietnamitas que aparecem no filme surgem em “pontas” e a própria vida em Saigon é mostrada de forma superficial. Por curiosidade, conferi os sites vietnamitas indicados por Luísa, com críticas ao filme, me valendo dos recursos do Google tradutor. Os textos são, no geral, bastante críticos, sustentam que a montagem foi amadora, que há transições inverossímeis, que a trilha sonora é ruim e, especialmente, que há passagens que deturpam a realidade do Vietnã. Um tema, enfim, que convida à reflexão sobre a forma como asiáticos e outros povos seguem sendo retratados por autores ocidentais.

O racismo tem sido debatido em todo o mundo e originado movimentos sociais importantes como o Black Lives Matter.  Desde o assassinato de George Floyd, em maio, em Minneapolis (EUA), a luta antirracista ganhou as ruas em protestos. Recentemente, as Nações Unidas abriram uma investigação mundial sobre o que denominou “racismo sistêmico”. Por óbvio, ele tem muito a ver com o Brasil e sua história, embora muitos ainda se recusem a reconhecer sua importância. Mais uma razão para assistir aos filmes de Spike Lee.

* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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