OPINIÃO

O que se comemora quando não há muito o que comemorar?

Por Carmen Hein de Campos e Fernanda Nunes Barbosa* / Publicado em 8 de março de 2021

Foto: Midia Ninja/ Arquivo

Foto: Midia Ninja/ Arquivo

O mês de março sublinha, de muitas formas, o começo do ano no Brasil, mesmo que pelo calendário gregoriano – por nós utilizado – oficialmente tenha início no primeiro dia do mês de janeiro. Março também é o mês de importantes celebrações de direitos, como o Dia Internacional da Mulher, no dia 8, e o Dia Internacional do Consumidor, no dia 15.

A ONU Mulheres elegeu como tema do International Women’s Day (IWD 2021 – Dia Internacional da Mulher) “Mulheres na liderança: alcançando um futuro igual em um mundo de covid-19”, destacando que “as mulheres estão na linha de frente da crise da covid-19 como profissionais de saúde, cuidadoras, inovadoras, organizadoras comunitárias e algumas das líderes nacionais mais exemplares e eficazes no combate à pandemia”, como a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern.

Celebrado internacionalmente desde 1975, este dia simboliza uma série de lutas por direitos das mulheres.

De outro lado, o Dia Mundial dos Direitos do Consumidor é comemorado anualmente desde 1983 pelos movimentos consumeristas, inspirados pelo discurso do presidente John Kennedy, que no dia 15 de março de 1962 enviou uma mensagem especial ao Congresso dos Estados Unidos, apontando questões relevantes para a proteção do consumidor. Kennedy ficou conhecido como o primeiro líder mundial a fazer essa defesa.

Treze anos depois, em 1985, a ONU, por meio de sua Assembleia Geral, editou a Resolução 39/248, adotando diretrizes para a proteção dos consumidores em âmbito internacional, em uma retomada da sua Resolução 38/147, de dezembro de 1983, que já apontava que o esboço das diretrizes de proteção ao consumidor deveria ser examinado pelo Conselho Econômico e Social, visando sua pronta adoção pela Assembleia Geral.

Embora os avanços legais tenham sido muitos nas décadas que se seguiram para os movimentos feministas e consumeristas, cotidianamente nos deparamos com vitórias e derrotas, estas especialmente agravadas pelo surgimento e paulatino avanço da epidemia da covid-19 desde meados de março do ano passado.

Violência de gênero e direitos do consumidor

No Brasil, um dos reflexos da pandemia foi o crescimento dos números da violência de gênero – em razão do confinamento imposto –; do aumento significativo de abusos cometidos contra os consumidores em razão da necessidade de consumo de produtos e serviços específicos; e da perda geral de renda da população.

Recentemente, a notícia de duas decisões ainda no ano de 2020 (uma no âmbito judicial e outra no âmbito administrativo) chamaram a atenção por tratarem de situações que afrontavam, escandalosamente, o direito do consumidor e o direito à não discriminação por questões de gênero.

Em um dos casos, um juiz de São Paulo condenou uma empresa de cosméticos (Pedaços de Amor) em razão de campanha publicitária alusiva ao Dia Internacional da Mulher que, no ano de 2017, exibia em outdoor na cidade de Santo André uma mulher transexual e o slogan “pirataria é crime”.

Na imagem, uma transexual negra urinava em pé no mictório de um banheiro masculino. Em sua sentença, o juiz aponta que, “ao afirmar que pirataria é crime e usar a imagem de um transexual para ilustrar a falsidade, a ré claramente atribui-lhe os predicados de inautêntico, espúrio e vicioso, o que, além de ofensivo, evidentemente não corresponde à realidade, porque o transexual, longe de uma ‘contrafação’, é uma pessoa como as demais, com virtudes e defeitos, direitos e obrigações, nos termos do art. 5º da Constituição Federal, que prevê a igualdade de todos sem distinção de qualquer natureza”.

A sentença transitou em julgado e, portanto, não pode mais ser alterada.

"o feminicídio cometido contra Eliza Samúdio é naturalizado em forma de “piada”, de modo a negar a brutalidade de sua morte e da violência praticada contra as mulheres"

Foto: Reprodução

“o feminicídio cometido contra Eliza Samúdio é naturalizado em forma de “piada”, de modo a negar a brutalidade de sua morte e da violência praticada contra as mulheres”

Foto: Reprodução

Em outro caso, também proveniente do estado de São Paulo, a Fundação Procon-SP aplicou multa a um restaurante (Primata Parrilla) da cidade de Presidente Prudente, que fazia graça com o feminicídio de Eliza Samúdio nas redes sociais.

Em uma de suas postagens, numa tábua de cortar temperos pendurada na parede constava a frase “o cão é o melhor amigo do homem – goleiro Bruno”. Em sua defesa, o estabelecimento sustenta que “vivemos em um país livre”, amparando a referida “piada” no direito à liberdade de expressão. No site do Procon, até a data deste texto, o restaurante aparecia como “estabelecimento autuado”, com a aplicação de multa no valor de R$ 1.134,85.

Esses dois exemplos demonstram como os movimentos feministas e os movimentos consumeristas travam batalhas diárias e conjuntas por reconhecimento e respeito, que constituem a base de uma sociedade solidária. Aliás, conforme já apontava o saudoso jurista italiano Stefano Rodotà, a experiência política mostra que, quando se tornam difíceis os tempos para a solidariedade, tornam-se também para a democracia.

No primeiro exemplo transparece uma transfobia racializada que pretende submeter a luta pelo reconhecimento à lógica do mercado, pois ao utilizar a imagem de uma mulher trans negra, o gênero e a raça emergem imbricados. Ao associar essa imagem à pirataria, o discurso preconceituoso da desigualdade de gênero e da discriminação racial ingressa na esfera pública e ameaça a democracia, pois sua retórica é dar sentido a um discurso único sobre sexualidade e raça, negando direitos a corpos racialmente generificados.

No segundo, o feminicídio cometido contra Eliza Samúdio é naturalizado em forma de “piada”, de modo a negar a brutalidade de sua morte e da violência praticada contra as mulheres. Os dois casos desnudam o patriarcalismo, a desigualdade de gênero, o racismo, a homofobia e expõem a lógica mercadológica do “vale-tudo” para chamar a atenção e vender o produto.

Neste mês de março de 2021, mais uma vez comemoramos o Dia Internacional da Mulher e o Dia Internacional do Consumidor como uma oportunidade de celebrar importantes conquistas civilizatórias. Por outro lado, também neste mês completamos exatos 12 meses desde a primeira morte por coronavírus no Brasil, e padecemos a marca de mais de 250 mil mortos desde o dia 12 de março de 2020 pela ausência de uma séria gestão da crise sanitária em nosso país.

O que se comemora, então, quando não há muito o que comemorar?

Essa é uma pergunta cuja resposta precisamos reafirmar a todo instante e que pode ser resumida em uma palavra: comemora-se a luta.

Reafirmar a necessidade de continuarmos a ação de homens e mulheres que nos antecederam e que se dedicaram a construir uma sociedade igualitária deve ser a razão para que não deixemos cair no esquecimento nossas conquistas, na esperança de que o amanhã nos traga mais razões para comemorar do que motivos para lutar.

*Carmen Hein de Campos é doutora em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professora da Graduação e do Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter. Integra o Consórcio Lei Maria da Penha e o Conselho Diretor da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos. 

Fernanda Nunes Barbosa é doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da Graduação e do Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter. Representante do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) junto ao Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Consumidor (Condecon) da cidade de Porto Alegre/RS.

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