OPINIÃO

Pedagogia da esperança e a pedagogia do encontro

Por Gabriel Grabowski / Publicado em 8 de setembro de 2021

Arte: Luiz Carlos Cappellano/ Domínio Público

Detalhe de Painel Paulo Freire, do Centro de Formação, Tecnologia e Pesquisa Educacional Milton de Almeida Santos, SME-Campinas

Arte: Luiz Carlos Cappellano/ Domínio Público

Para Paulo Freire, nascido em 21 setembro de 1921, que não morreu e vive entre nós

Quando, em 1992, Paulo Freire escreveu a Pedagogia da Esperança, o Brasil passava por tensionamentos políticos, entre avanços democráticos e por uma desilusão com utopias e perspectivas futuras.

Foi o ano em que Collor sofreu impeachment.

Enquanto muitos discursos pragmáticos defendiam a adaptação à realidade, alegando que sonhos e utopias eram inúteis, Freire optava pela prática educativa enquanto uma opção progressista, desveladora e uma experiência de desocultação da verdade.

Nessa obra, Freire apontava e denunciava que “a democratização da sem-vergonhice que vinha tomando conta do país, o desrespeito à coisa pública, a impunidade, se aprofundaram e se generalizaram tanto que a nação começou a se colocar em pé, a protestar. Os jovens e os adolescentes também vêm as ruas, criticam, exigem seriedade e transparência. O povo grita contra os testemunhos da desfaçatez. As praças públicas de novo se enchem. Há uma esperança, não importa que nem sempre audaz, nas esquinas das ruas, no corpo de cada uma e de cada um de nós. É como se a maioria da nação fosse tomada apor uma incontida necessidade de vomitar em face de tamanha desvergonha”.

A esperança freiriana tem uma dupla dimensão:  ontológica e de ação. “Não sou esperançoso por pura teimosia mas por imperativo existencial e histórico. A esperança é necessidade ontológica”. O ser humano e a educação de humanos não podem prescindir da esperança, inclusive, porque ninguém tem o direito de semear a desesperança para os estudantes que estão iniciando a vida e os estudos. Nas palavras dele: “Não é, porém, a esperança de cruzar os braços e esperar. Movo-me na esperança, enquanto luto, e se luto com esperança, espero”.

Essa pedagogia reafirma uma perspectiva e compromisso de utopias possíveis, de sonhos e projetos de um futuro para a nação brasileira, particularmente os jovens estudantes.  E mais, Freire era categórico de que não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens.

A utopia implica essa denúncia e esse anúncio, mas não deixa esgotar-se a tensão entre ambos quando da produção do futuro antes anunciado e agora um novo presente. A nova experiência de sonho se instaura, na medida mesma em que a história não se imobiliza, não morre. Pelo contrário, continua.

Unidades na diversidade

Estamos a atravessar hoje uma condição similar à de 1992. Crise política e econômica que perdura desde 2016, retrocessos nas políticas sociais e educacionais, presidência da República semeando ameaças em plena crise sanitária da covid-19 e possibilidades de retrocessos democráticos. Muitas incertezas e inseguranças de todas as ordens. Comunidade internacional em alerta. Investidores temerosos. Cientistas, intelectuais e jovens deixando o país ou planejando fazê-lo.

Neste ambiente, inspirados pela vida e obra de Paulo Freire, novamente nós, enquanto educadores, precisamos reafirmar e promover a utopia e a esperança, através da denúncia e do anúncio, da resistência e da ação, com unidade na diversidade, apostando na cultura, na ciência e no conhecimento, com democracia e justiça social.

A pandemia da covid-19 parou o mundo. Fechou as escolas. O “mercado global da educação” quer tirar o máximo de proveito da crise atual. E esses mercadores oportunistas semeiam e decretam algumas “ilusões” que precisamos denunciar e nos contrapor, tais como: as aprendizagens acontecem naturalmente  numa diversidade de tempos e ambientes;  que a escola física vai dar lugar à “escola virtual” (remota, digital); que a pedagogia será substituída pelas tecnologias; que os professores são prescindíveis e tutores e instrutores de plataformas inteligentes bastam e, que a qualificação para o trabalho é mais importante que a formação de seres humanos para viverem juntos em sociedades ambientalmente sustentáveis.

Este mercado da educação ancora-se na lógica do “solucionismo tecnológico” e do “consumismo pedagógico”. Esta indústria aposta no digital, com ofertas privadas, com produção de conteúdos, materiais e instrumentos de gestão para a educação pública. Eis a razão de tantos institutos e fundações empresariais ditando soluções educacionais, meritocráticas, baseadas em avaliações de desempenho, especialmente para a educação pública, fazendo parte de cogestão em secretarias de Educação por todo o Brasil.

Nessa tensão freiriana de denunciar e de anunciar, António Nóvoa e Yara Alvim propõem uma terceira categoria: enunciar. Enunciar outras possibilidades que nos libertem da tirania do presente.

Em recente artigo intitulado Os professores depois da pandemia (2021), os autores contrapõem as “ilusões” acima referidas e reafirmam que a educação implica sempre uma intencionalidade, impõe a valorização dos professores na construção de um espaço público comum da educação, na criação de novos ambientes escolares e na composição de uma pedagogia do encontro.

Os autores reconhecem que o contrato entre a escola e a sociedade estabelecido há mais de 150 anos precisa ser revisto, já que a covid o revogou. Mas a educação deve ser produtora do comum, valorizando as diferenças, sempre em uma mesma sociedade.

Aprender a estudar em comum é a melhor forma de produzir uma vida em comum, uma sociedade convivial. Para tanto, precisamos de uma educação pública que nos permita ir além do espaço que já habitamos: a casa. Até porque a casa é o contrário da escola. Em casa estamos entre iguais, na escola estamos entre diferentes e, o que nos educa é a diferença.

A casa representa esfera privada, a escola é ambiente público. Esse espaço público comum da educação precisa de construtores. E essa é a missão dos professores. Somente eles podem construir as condições para uma capilaridade educativa baseada no comum e na convivência.

Este espaço público só terá sentido com uma forte participação social, mediante novas articulações entre os tempos familiares, sociais e laborais. As tecnologias, por si só, não educam ninguém. São meios. A educação possui télos: humanizar.

Sem professores, nossa educação seria muito mais pobre e limitada, pois nada substitui a relação humana. Há um patrimônio humano que é impossível digitalizar, virtualizar.

A escola constitui-se em um espaço de abertura, mas, também, de recolhimento. O tempo escolar é diferente do tempo social. A escola precisa “desacelerar” o mundo e a vida, permitindo aos estudantes experiências que, na velocidade vigente, não tem outro lugar.

Precisamos praticar o silêncio da escuta, a compreensão do outro e praticar a capacidade de nos “desconectarmos” do digital para a experiência da existência humana única.

Para Nóvoa e Alvim, a educação funda-se em dois movimentos: adquirir uma herança e projetar um futuro, nos permitindo ir mais longe, através do conhecimento científico, artístico, literário, filosófico e humanístico. Entre o indivíduo e a sociedade, há a humanidade. Podemos ser livres e, para tanto, não precisamos estar sós.

Pertencimento

A pedagogia do encontro é sempre uma relação humana, pois o digital permite manter laços, mas nunca substituirá o encontro humano. Não há ensino sem conhecimento, sem um encontro intenso, por vezes duro e sofrido.

A pedagogia não pode ser a repetição monótona do que já conhecemos, mas deve ser como a pesquisa, um gesto de procura, de descoberta, de curiosidade e de prazer.

O encontro não se dá com um “conhecimento acabado”, mas como movimentos de construção; as neurociências contribuem para perceber o funcionamento do cérebro e os processos de aprendizagem, demonstrando que a “consciência é uma grande sinfônica” em que as emoções têm valor cognitivo e que não é possível separar o sentir e saber; a pedagogia é um processo conjunto de construção de aprendizagens, mas é, também, uma forma de pertencimento humano.

A pedagogia do encontro exige reciprocidade, inclusive porque adoecemos quando somos privados da presença do outro. É muito vulgar a afirmação de que, hoje, qualquer um de nós traz no bolso, ou no celular, mais informações, dados e imagens do que a ciência acumulou ao longo dos séculos. Como aprender a pensar, sabendo que nunca poderemos fazê-lo sozinhos. É para isso que precisamos dos professores, para comporem uma pedagogia do encontro.

Que este diálogo entre a Pedagogia da Esperança e a Pedagogia do Encontro denunciem as falácias da “escola virtual”, que anunciem sonhos e utopias para as novas gerações e, enunciem uma escola enquanto espaço público comum construído pelos professores e estudantes. O que nos humaniza não é mais conhecimento, mais técnica, mais qualificação profissional, mais verdade, mas a busca de sentido para nossa vida e para nossas ações.

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