OPINIÃO

O normal que nos espera neste outubro de 2021

Por Marco Aurélio Weissheimer / Publicado em 8 de outubro de 2021

O normal que nos espera neste outubro de 2021

Foto: Pixbay

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“O normal não é normal, o governo não governa, a orientação desorienta, o óbito virou alta…”

Ao longo dos últimos vinte meses da pandemia de covid-19, nosso corpo e nossa mente, nossas emoções e sentimentos viveram experiências cuja percepção ainda está sendo elaborada em narrativas mais ou menos conscientes por cada um de nós. Aos poucos, pelo que se vê nas ruas, a vida parece que vai retornando ao “normal”…Vai mesmo? Um dos problemas para aferir e perceber essa situação é que o próprio conceito de “normal” está sob questionamento. Durante a pandemia, produziram-se muitas reflexões sobre essa ideia do “novo normal”. A diferença é que, agora, começamos a vivenciá-lo, progressivamente, fora do ambiente de distanciamento social.

Chegamos a outubro de 2021. Para além dos riscos ainda presentes da pandemia, da enorme parcela da população brasileira que ainda não tomou o ciclo completo da vacina (para não falar da necessidade de uma terceira dose para alguns setores da população), todos os custos e danos mais ou menos ocultos deste período que estamos vivendo vão se tornando mais visíveis. Esses custos envolvem isolamento social e emocional, estranhamento em relação à rua, precarização do trabalho e de direitos, aumento da fome e da desigualdade social, destruição ambiental e desmonte de serviços e políticas públicas. Que normal é esse que nos aguarda nas ruas, nos espaços públicos de trabalho e convivência social e dentro da nossa própria cabeça?

Para Jean Segata, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), há um pesadelo por trás dessa ideia de “novo normal” ou de “nova normalidade”, que se expressa pela naturalização de processos destrutivos da vida no planeta, pela absorção predatória da vida privada pelas relações de trabalho e pela transformação da rua e do espaço público em territórios cada vez mais hostis que serão habitados pelas pessoas que não podem trabalhar em casa. A ideia de um “novo normal” envolve, além da naturalização desses processos destrutivos, a banalização da necropolítica que se instalou no Brasil e já contabiliza cerca de 600 mil mortes só pela covid-19 (para não falar dos problemas envolvendo a subnotificação de casos).

As últimas notícias do final de setembro, no âmbito da CPI da Covid, no Senado Federal, envolvendo as “orientações” do governo Bolsonaro desde o início da pandemia e suas repercussões no cotidiano de enfrentamento da doença, chocaram muita gente, mas talvez seja um exagero dizer que chocaram o país, pois esse parece ainda estar anestesiado ou vivendo um estado alterado de consciência. Entre outras denúncias, ouvimos que o plano de saúde privado Prevent Senior teria determinado deliberadamente a oxigenação de pacientes após 14 dias de internação na UTI para proporcionar a “liberação de leitos”. O princípio que orientaria essa determinação seria “óbito também é alta”. A se confirmar essas denúncias, quantas pessoas perderam a vida por conta desse e de outros procedimentos similares que teriam ocorrido Brasil afora?

As consequências do que aconteceu nos últimos 20 meses que vivemos sob o “comando” de um governo que adotou a necropolítica como política de gestão ainda estão para ser descobertas em todas as suas implicações. Como aparece neste próprio texto, está difícil escrever sem o uso de aspas, o que indica que as próprias palavras estão gritando por novos significados. O normal não é normal, o governo não governa, a orientação desorienta, o óbito virou alta…

Mesmo em meio ao isolamento (para aqueles que conseguiram praticá-lo), nos acostumamos a conviver com paisagens doentias, na esfera social, governamental, no mundo do trabalho, na nossa relação com a natureza, com os animais e com o próximo. Como saímos desse período de 20 meses? Há uma dimensão na resposta a essa pergunta que é essencialmente individual. Cada um de nós tem a sua própria história. Mas existe uma dimensão social e coletiva dessa experiência, cuja percepção talvez comece a ficar mais clara nos próximos meses. Se a vida retornar à “normalidade” como se nada demais tivesse acontecido, esse será um sinal que permanecemos presos a uma paisagem doentia. No caso, a paisagem confunde-se com o próprio país.

 

 

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