OPINIÃO

Dandaliara, a mulher de dois mundos que se encontra com a Potência Z

Por Janete Santos Ribeiro / Publicado em 19 de novembro de 2021
Janete Santos Ribeiro

Foto: Arquivo Pessoal

Janete Santos Ribeiro

Foto: Arquivo Pessoal

A noite não adormece nos olhos das mulheres
Conceição Evaristo

Ficou a pensar: “O que é ser mulher negra e ser convidada para uma festa-ocupação da Rede de HistoriadorXs NegrXs em pleno mês da consciência negra? Há uma idade de aquilombar-se nos veículos de mídia ou não? Com quais sonhos, desejos, realizações?”.

Pensar demais deu dor de cabeça. Foi dormir. Eis que em sonho, surgem fabulações. Torna-se outra.

Vêm saídas de águas de sal e doce: Odoyá, para as iniciadas nos mistérios do mar, e Dandaliara, filha da sereia que habita os rios, que acolhe e nutre respostas!

Odoyá, senhora de si e de conquistas, lhe segreda: “Sou negra tal como a noite em chão de estrelas, me nutro de lua cheia e mar azul que trago em minhas vestes”.

Dandaliara lhe conta: “Fiz-me mulher nas Águas de Amaralina, no Terreiro de Jesus e no porto onde embarquei para Cachoeira ao encontro das velhas senhoras. Elas me acolheram quando a brisa cessou e eu precisava de mais ar. Ter ar era a minha urgência!”

Odoyá, por sua vez, lhe confia: “Refiz-me em Porto Alegre, onde meu filho Bará sopra boas novas bem no centro do Mercado Municipal. Seu lugar na cidade lhe fez anunciador de conquistas de nosso povo. Em silêncio, inspirou nossa gente a se juntar, como no Floresta Aurora, clube negro que vem de longe nessa Porto Alegre, que em muitos lugares foi e é Porto Negro. Sabes que tem gente que pensa que não estamos por lá?”

Dandaliara reage: “Teve movimento para nos excluir, nos invisibilizar. Resistimos e reexistimos, sempre e com muito deságue de nossos corpos. Dizem até que nossas águas desaguam no Rio Guaíba. Daí sua beleza, encanto e condição de lugar de encontros”.

“Você não escutou o que os batuques de Bará te avisaram?” – atravessou Odoyá as palavras de Dandaliara. “Seu encontro com o afeto te levaria ao Recôncavo, onde viverias por 50 anos e, em desejo ardente de aquilombamentos ancestrais, reviveria o que os seus aprenderam a chamar de Palmares”.

Neste momento, versos de um poema de Beatriz Nascimento sobre a Potência Z de Zumbi correram os pensamentos de Dandaliara como raios de iluminar memórias: “E eis que surge na arena / Dançarino flamejante de intenções / Descabido como algo que desceu em terreno ocupado / Misterioso como dádiva encantada / De longínquas paragens”.

O pensamento de Beatriz Nascimento, mulher da tríade educação, militância e academia, lhe chegou quando aprendia os novos significados do mês negro. Sentidos que foram atribuídos inicialmente pelo Grupo Palmares de Porto Alegre. Dandaliara finalmente entendeu que seu lugar é ali, nas terras de Quintana, ou melhor, nas terras de Oliveira Silveira. Quem sabe no mesmo bairro ou entre as mesmas pessoas que fazem hoje o Sopapo Poético, que canta Palmares contra o ódio e o racismo!

Dandaliara, filha mais jovem da mãe de todas as cabeças se percebeu também uma irmã do Bará, que aparecia como Zumbi nos versos de Beatriz: “Quem era aquele viajante de tantos confins? Confinado em seus próprios gases?”.

Dandaliara acordou e sentiu que retornou serena, aprendiz de encantos ocultos que fazem mulheres e homens, também, quererem descobrir outro céu, outro rio, outro mar. Segredos que fazem com que as águas do Guaíba banhem feridas, nutrindo poderes de cura de quem vem de outras terras!

Foi, então, ao mercado e encontrou com seu irmão. Apesar do cansaço dos 50 anos sentidos como fuga de seu destino, ele estava ali, em sua terra natal, ao lado dos seus, vivos ou não. Ela sabia que na encruzilhada do mercado municipal poderia se encontrar nos caminhos que a levavam às águas do rio e de lá para os espaços de seus sonhos por uma educação para a liberdade.

Dandaliara é uma professora. Sua bagagem, composta de memórias atravessadas de águas turvas das histórias submersas de corpos jogados ao mar e outros tantos que sobreviveram à travessia, lhe ajudava a promover um ensino antirracista!

Em seus dias, dali em diante, parecia que Bará, seu irmão mais velho, lhe dizia: “Tenha fé, seu caminho está aberto para dentro de si e para o seu povo. Reencante-se com seu sagrado, alimente-se de suas águas e sigam sempre juntos!”.

Dandaliara dançou para que seus sonhos e os de Bará se realizassem.

***

A festa da consciência negra promovida pela Rede de HistoriadorXs NegrXs (RHN) neste cinquentenário do 20 de Novembro, como episódio das lutas negras por uma história que respeite nossa humanidade na educação básica e em outros espaços sociais, ganhou a participação da figura onírica de Dandaliara.

Eis a minha maneira de contribuir para os avanços nas legislações antirracistas, inspiradas nas memórias palmarinas e nos cursos de escrita criativa ministrados pela ativista e professora da UFRRJ Joselina da Silva.

A Lei 10.639/2003, que institui o 20 de novembro no calendário escolar, completou 18 anos. Sua maioridade se traduz em desafios que a ocupação liderada pela RHN enfrenta com altivez e diversidade. Um deles é fazer chegar aos corações e mentes de crianças, jovens e adultos outras formas de narrar e ser narrado por sonhos de liberdade.

 

Janete Santos Ribeiro é professora-pesquisadora de suas práticas na Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, onde é membra do NEAB-Sankofa, co-fundadora do Projeto Diálogo entre Povos com a amiga-irmã de Azoilda Loretto da Trindade e Cecília Luiz, em 1993, onde a tríade Academia X Escola Básica X Ativismos teve a centralidade. Mestre em Educação pela UFF, campo das classes populares. Membra da RHN.

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