OPINIÃO

A corrupção da noção de liberdade

Por Plínio Melgaré / Publicado em 11 de fevereiro de 2022

Foto: Reprodução/Youtube

Apresentador do Flow Podcast disse em conversa com deputados federais Kim Kataguiri e Tabata Amaral, no dia 7 de fevereiro, que Brasil deveria ter partido nazista. Comunidade judaica repudiou youtuber por discurso de ódio.

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“Para ser tolerante, é preciso fixar os limites do intolerável” – Umberto Eco

O podcaster famoso, liberto de seus freios inibitórios, defende: “Eu acho que o nazista tinha que ter o partido nazista reconhecido pela lei”. E completa seu raciocínio: “Se o cara quer ser antijudeu, eu acho que ele deveria ter o direito de ser”.

De plano: ninguém tem o direito de ser racista. Não se tem o direito de torturar, de matar, de escravizar, de subjugar outra pessoa. À barbárie, o direito se opõe com valores humanistas. Afirmada com as Declarações de Direitos Humanos, a civilização enriqueceu a vida humana com o reconhecimento de sua dignidade, alheia a qualquer condição particular da pessoa.

Outro ponto do discurso: a possibilidade de um partido político nazista. Fruto da própria experiência vivida, do convívio cotidiano com o horror, a Alemanha proíbe a negação do Holocausto, assim como veda a criação de partidos nazi. Mas essa proibição não é só fruto da experiência nazista: radica na preocupação de não reiterar o erro de uma era anterior ao próprio nazismo, tolerante com a criação de partidos como o de Hitler.

O que diz a Constituição brasileira

A Constituição brasileira também veda a criação de partidos nazistas. Em seu artigo 17, estabelece um parâmetro normativo: vincula a criação de partidos ao regime democrático e aos direitos fundamentais.

É um elemento de autodefesa do próprio regime democrático, que não aceita agremiações partidárias antidemocráticas. Aproxima-se do conceito de “democracia militante”: a democracia deve ter mecanismos que a protejam de projetos de poder totalitários.

Acaso, não foi essa a posição do Supremo Tribunal Federal diante dos atos antidemocráticos promovidos no último 7 de setembro?

O conceito de democracia militante foi desenvolvido por Karl Lowenstein, no já distante ano de 1937. A relevância do conceito se robustece diante das novas correntes extremistas que assumem o poder – ou pretendem assumi-lo – e se valem de espaços franqueados pela democracia para subvertê-la.

Não se desconhecem os representantes da extrema-direita que negam os direitos fundamentais. Por mais tolerante que seja, uma democracia deve estar apta para proteger suas frágeis linhas demarcatórias e os valores que a densificam.

A tolerância servindo à causa da opressão

Conforme Samuel Issacharoff, “até uma sociedade tolerante e democrática deve ser capaz de fiscalizar as suas frágeis fronteiras.” Permitir a propagação de ideias antidemocráticas equivaleria à própria morte da democracia.

E isto a democracia não pode tolerar: ideias e ações que a destroem. Seria necessária uma condição de autoproteção da própria democracia.

Muitos autores se dedicaram a esse tema. Herbert Marcuse, por exemplo, construiu o conceito de “tolerância repressiva”. Grosso modo, ideias ruins não devem ser toleradas, ideias intolerantes devem ser eliminadas. Releva observar que, no início da modernidade, a tolerância surge como um ideário progressista, contrapondo-se à intolerância religiosa.

Nessa linha, contribuiu para a pacificação da sociedade europeia. Mas, no século XXI, com o ressurgimento de ideologias e governos extremistas, o ideal liberal de tolerância é corrompido, reavivando a percepção de Marcuse: “o que se pratica e proclama hoje como tolerância serve em suas mais eficazes manifestações à causa da opressão”.

Assim, a fala de Monark se insere em um ideário que se propaga com a velocidade das pragas; que apregoa o direito de falar o que se bem entende e até a liberdade de praticar atos destruidores da democracia e de seus valores, como, por exemplo, a igualdade entre as pessoas.

É a corrupção da noção de liberdade. Invocam uma falsa liberdade do indivíduo se expressar para, em uma espécie de “liberticídio”, fazer apologia à barbárie. Compreende-se que a liberdade transite pelo campo das características individuais.

Contudo, há de se percebê-la, na dinâmica de sua práxis, como algo que se realiza social e coletivamente. Afinal, como ensina Safatle “não há indivíduos livres em uma sociedade não-livre”.

Assim, não há direito ao preconceito e tampouco o direito de afirmá-lo em nome de alguma vã liberdade individual. Como se houvesse a liberdade para eliminar as minorias ou, simplesmente, aniquilar o diferente. Ah, o nome desse ideário? Fascismo!


Plínio Melgaré é professor da Escola de Direito da PUCRS e FMP e advogado.

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