OPINIÃO

Memorial da folia

Por Fraga / Publicado em 17 de março de 2022

Ilustração: Rafael Sica

Ilustração: Rafael Sica

Nem Sapucaí nem Porto Seco: o jeito foi curtir o carnaval no Areal da Baronesa, ali na Cidade Baixa. Nem precisei me deslocar, apenas recuei aos anos 50.

A gente morava quase dentro do maior e mais bonito coreto de bairro, aquele da Rua Miguel Teixeira (rua agora com parte amputada pela perimetral). Esse coreto tinha a estrutura semelhante à ponte de Londres: de noite fechavam a rua, de dia abriam, e ele permanecia montado. No centro ficavam os tronos do Rei Momo e suas princesas, nas laterais os serviços de alto-falante e os jurados.

No tríduo momesco, o nosso grande quintal, na esquina da Praia de Belas com a Miguel Teixeira (até hoje estão lá o mesmo muro, as mesmas árvores), virava os bastidores do espetáculo. Lá iam aquecer o couro dos instrumentos, ajeitar as fantasias, fumar e beber. Mais de uma vez minha avó Florinda emprestou cabras para os desfiles humorísticos. Ela emprestava sem nem saber pra quem. E as cabras sempre foram devolvidas.

Nas cinco noites da grande fuzarca, o clima era inebriante: era Rodox e outros lança-perfume no ar. E as marchinhas só eram interrompidas nas apresentações dos blocos. Não sei se era eu o inocente, mas havia alguma inocência naquela festa. A rua da Margem, vulgo João Alfredo, também se enchia de atrações, com as barraquinhas onde confete, serpentina e gorros eram os gêneros de primeira necessidade que todo mundo ia comprar.

Nos meus 5 ou 6 anos, eu me espalhava até a Praça Garibaldi, encantado com a zoeira. Minha avó me criou solto e no carnaval essa liberdade era ampliada. O que mais me fascinava eram as tribos, sobretudo os Caetés e os Bororós. Apesar da arte plumária só com plumas de avestruz, eram um sucesso, coisa única no carnaval brasileiro.

Em 1955 nos mudamos para a Vila Mato Sampaio, atual N. S. de Fátima. Perdi o carnaval da Miguel Teixeira mas ganhei o da Paineira, uma travessa da Protásio Alves. Lá fui conhecer outros arrebatamentos, as escolas de samba. Trevo de Ouro, Aí Vem a Marinha, Fidalgos e Aristocratas, Bambas da Orgia e a esplendorosa Praiana, que me conquistou para sempre.

Os carnavais de bairro levavam a festa a quem não podia ou não queria ir até a Borges de Medeiros. Além de Paineira, eu costumava frequentar o coreto da Vicente da Fontoura: na Paineira, carnaval de chão batido; na Vicente, carnaval no asfalto.

Bom, são apenas alguns apontamentos para a autobiografia que nunca escreverei. Pros netos saberem que já fui folião (três desfiles e um enredo na Praiana, além de uma vez na Imperadores e outra na Unidos de Vila Isabel, de Viamão). Que acompanhei os carnavais da Borges, da João Pessoa, da Perimetral, até que escorraçaram a festa pro Porto Seco, um jeito lento de matar à míngua a principal manifestação popular.

Se deus quiser, meu cardiologista deixar e o corona não impedir, espero me soltar no carnaval de 2023. De ilusão também se vive.

 

 

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