OPINIÃO

Porto Alegre muito antes de 26 de março de 1772

Por Claudia Porcellis Aristimunha, Ezequiel Viapiana e Roselena Colombo / Publicado em 24 de março de 2022

Foto: PoAncestral/ Divulgação

“Porque, a cidade na qual nascemos, migramos e vivemos, é, nesse contexto, uma cidade, infelizmente para poucos, para quem tem condições de usufruir os equipamentos, recursos e espaços privilegiados”

Foto: PoAncestral/ Divulgação

Oficialmente comemoram-se os 250 anos de Porto Alegre no dia 26 de março, apesar dos intensos debates e questionamentos historiográficos que já vêm de longa data.

A memória é, como sabemos, um campo de disputa privilegiada e, sob a lógica dos atuais governantes no Paço Municipal, conglomerados midiáticos e empresariais, a Porto Alegre da atualidade é marcada pela inovação, pelo empreendedorismo e pela celebração de uma raiz fortemente vinculada à herança, ocupação e colonização portuguesa.

Para nós, do Projeto PoAncestral – Muito Além de 250, encampado pelo Coletivo de Professoras e Professores de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (CPHIS) e Associação dos Trabalhadores em Educação (Atempa), evidencia-se uma comemoração descontextualizada e eurocêntrica, cuja tradição inventada provoca o apagamento de uma longa história de ocupação humana da cidade por povos originários, desde 12 mil anos, pelos menos, como demonstram pesquisas arqueológicas recentes.

Importante salientar que essa construção historiográfica de matriz colonialista invisibiliza também as formas de ocupação violenta da cidade – desde a expulsão contínua de comunidades indígenas, quilombolas e periféricas – até a destruição de vestígios dos seus legados tecnológicos e culturais.

Tal situação se mantém no tempo presente em que os projetos de “revitalização” desrespeitam tradições e os modos de vida dessas populações.

Se por um lado sabemos que tal lógica é a regra não somente em nossa cidade, mas em todo o país, por outro lado há centenas de experiências pedagógicas, projetos, pesquisas e estudos nos mais diversos setores sociais na cidade que se debruçam a desvelar essas relações de poder e a dar visibilidade às nossas ancestralidades ameríndias e africanas.

No entanto, carecemos de uma plataforma comum de pesquisa, socialização, construção de experiências e de materiais didáticos pedagógicos que transcenda nossos espaços específicos de trabalho e pesquisa.

PoAncestral se propõe a criar um espaço comum, amplo e plural dos diferentes coletivos, setores, pessoas e grupos de pesquisa – que trabalham as questões indígenas, afrodescendentes e de setores excluídos da história oficial – para atuar com um calendário de atividades, apoiando as lutas populares, promovendo ações e formações e também um portal/repositório dessas diferentes frentes de atuação na capital.

Apagamento da história

Um exemplo do peso da historiografia oficial e de seu discurso pode ser sentido ao ler artigo publicado na seção Almanaque Gaúcho, do jornal Zero Hora de 23 de março sobre as antigas polêmicas envolvendo o marco de fundação da cidade.

Impressiona a naturalização absoluta do apagamento da história mesma da cidade. Sim, não é algo simplesmente teórico.

Ao esconder a nossa história, nos perdemos de nós mesmos, não conseguimos nos entender; muito menos perceber a/o outra/o. Ficamos à deriva num espaço fictício e, destituídos de nosso passado, não conseguimos construir pontes e novas possibilidades de viver a cidade.

Porque, a cidade na qual nascemos, migramos e vivemos, é, nesse contexto, uma cidade, infelizmente para poucos, para quem tem condições de usufruir os equipamentos, recursos e espaços privilegiados no Centro Histórico, praças centrais ou orla do Guaíba. Ou ainda, consumir no 4º Distrito, na Cidade Baixa, no Moinhos de Vento. Para não falar dos shopping centers ou verdadeiras cidades-muralhas, que são os condomínios fechados de alto padrão, na casa de milhões.

Povos originários

Ao ocultar a ocupação milenar de povos originários (guaranis, kaingangs, charruas, minuanos, xoklengs), se omite o quanto de tecnologias e saberes esses povos nos deixaram de herança.

Saberes que usufruímos no dia a dia e que ignoramos pelo apagamento intencional pelas classes dominantes e a oficialidade. Porto Alegre, ser e estar aqui remonta à inteligência ocupacional desses povos que se instalaram às margens do lago.

O próprio  nome – Guaíba, algo como “encontro das águas” do tronco tupi-guarani – soa estranho e deslocado tendo como horizonte a historiografia oficial. No artigo que se propõe a fazer um resumo desse debate, é citado o historiador e arquiteto Riopardense de Macedo, que em seu livro O Aniversário de Porto Alegre defendeu a data de 26 de março de 1772 como marco fundacional e base para a Lei 3609/71 que estabeleceu a data oficial do aniversário da capital.

No mesmo texto, que também traz o envolvimento à época, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) na defesa da data – em nenhum momento entra em cena a construção deste espaço às margens do Guaíba por povos originários.

Já no item 7 da Síntese Cronológica da Evolução da Capital, de 1725 a 1925, de Amyr Borges Fortes o fato de um Edital Eclesiástico (enquanto poder do Estado Colonial) “elevar a capela de Francisco dos Casais à categoria de freguesia, desmembrando-se da freguesia de Viamão” era e é considerada referência totalmente justificável para demarcar o início da história da cidade.

Gauchismo conservador

Alguns entendem esse debate que ora travamos desnecessário ou secundário; dirão que Porto Alegre sempre foi acolhedora de todos os povos.

Tal narrativa se enquadra no discurso de uma diversidade inócua e empobrecedora, porque romantizada e que solapa a desigualdade social, do discurso mitificado do gauchismo, conservador até a medula, que surge para amenizar a violência que se alastrava por todas as querências contra povos indígenas, africanos e afro-brasileiros. Tal tradição inventada sucumbe aos dados – Porto Alegre é a capital mais segregacionista de nosso país.

Num esforço de desalienação em relação às paisagens tão nossas, cotidianas, podemos nos perguntar, admirando os espaços verdes que ainda sobrevivem na cidade, o quanto deles se deve aos modos de vidas não predatórios dos povos indígenas.

Por isso, vamos, sim, celebrar nossa cidade. Mas para fazer jus à sua história, a de todas e todos que a construíram, precisamos trazer à tona as histórias desses povos, que assim como os quilombolas e demais comunidades periféricas, constroem, sustentam e dão vida a Porto Alegre.

Precisamos também defender suas lutas – como a legalização definitiva dos 11 Quilombos urbanos e dos territórios indígenas retomados, a construção da escolas indígenas e a Retomada da Casa do Estudante Indígena – contra os atuais governos federal, estadual e municipal – que atacam cotidianamente a população trabalhadora.

Outra Porto Alegre possível

Queremos e necessitamos de uma cidade que recupere a sua larga tradição de democracia participativa e lutas populares. Que não seja governada tão somente para os interesses da especulação imobiliária e uma classe média confortável em suas bolhas reais e virtuais.

Hoje, o que vemos, desde nossa labuta cotidiana, como trabalhadoras/es nas escolas públicas da capital, são bairros, vilas, ocupações de uma cidade esquecida completamente e que não se vê nas propagandas oficiais.

Uma cidade cuja maioria da população sofre com problemas comezinhos, mas vitais como a fome diária, o desemprego avassalador, a falta de água, transporte público de péssima qualidade e tarifas exorbitantes, inexistência de espaços de lazer e entretenimento.

Oxalá que Porto Alegre não sucumba aos ventos fascistas que anunciam dias piores  e que possa, num futuro próximo, caminhar na direção de outra estrutura social – um ecossocialismo – no qual quem produz as riquezas seja também seu proprietária/o.

Onde a lógica de funcionamento parta do respeito às ancestralidades e suas sabedorias, sem nenhum tipo de opressão nem exploração! Voltada para a população trabalhadora, que verdadeiramente fez e faz, todos os dias, essa cidade acontecer, de verdade!

Claudia Porcellis Aristimunha é historiadora e técnica do Museu da Ufrgs.
Ezequiel Viapiana é professor da rede municipal de ensino de Porto Alegre e diretor da Atempa.
Roselena Colombo é professora aposentada de História da rede municipal de ensino de Porto Alegre e integrante do CPHIS.  

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