OPINIÃO

O sistema de justiça e a crise civilizatória no Brasil

Por Marco Weissheimer / Publicado em 12 de maio de 2022

Foto: FSMJD/ Divulgação

Ana Paula, Marinete, Fernanda e Dilma chamaram a atenção para a necessidade urgente de ampliar a organização e a participação social

Foto: FSMJD/ Divulgação

Ana Paula Oliveira, moradora da favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, que teve o filho de 19 anos assassinado com um tiro nas costas por um policial militar, contou como entrou em contato com o sistema de justiça: “Foi através da dor”

O sistema de justiça brasileiro é um dos principais responsáveis por jogar o país em uma crise civilizatória sem precedentes, com práticas de lawfare, omissões e perseguições, inclusive dentro do próprio sistema, com graves consequências para a sociedade como um todo e que afrontam a democracia.

A avaliação da procuradora do Trabalho Vanessa Patriota da Fonseca, coordenadora do Coletivo Transforma MP, resume bem o espírito dos debates que marcaram o Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD), realizado em Porto Alegre, de 26 a 30 de abril, juntamente com o Fórum Social das Resistências.

O Coletivo Transforma MP, uma das entidades organizadoras do FSMJD, é uma associação formada por membros do Ministério Público dos Estados, da União e do Ministério Público do Trabalho, que vem procurando promover um debate crítico sobre a atuação do sistema de justiça brasileiro por dentro da própria sociedade e, também, em conjunto com outras entidades.

O tom crítico dessa reflexão só cresceu após dois anos de pandemia em meio ao governo Bolsonaro, em que o processo de violação de direitos só aumentou, atingindo especialmente povos indígenas e a população negra que mora nas regiões da periferia das cidades.

O sistema de justiça brasileiro, assinala Vanessa Patriota, é majoritariamente branco, heteronormativo e masculino e não tem dado conta de responder aos anseios dos movimentos sociais e da sociedade como um todo por justiça e democracia.

Mais grave ainda, acrescenta, “em muitos momentos, a gente sente como se o Ministério Público fosse até partícipe” das violações de direitos. Isso ocorre, exemplificou, quando se veem integrantes do Ministério Público pedindo a condenação de pessoas por crime famélico, justamente no momento em que o Brasil voltou ao mapa da fome.

Uma das principais mesas de debate do Fórum reuniu algumas vítimas desse sistema que sofreram violência do Estado e tiveram seus direitos violados de diferentes formas.

Depoimentos

Em um depoimento emocionado, Ana Paula Oliveira, moradora da favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, contou como entrou em contato com o sistema de justiça. “Foi através da dor”, sintetizou.

O filho de Ana Paula, Jonathan, de 19 anos, foi assassinado com um tiro nas costas por um policial militar no Rio de Janeiro, no dia 14 de maio de 2014. O policial autor do disparo está até hoje em liberdade. Juntamente com outras mães que tiveram seus filhos assassinados pelo Estado, Ana Paula criou o movimento Mães de Manguinhos, “um movimento de mães de negros pobres, moradores de favelas, assassinados pelo Estado brasileiro”, como definiu.

Também presente neste debate, Marinete Silva, mãe da vereadora Marielle Franco, assassinada no dia 18 de março de 2018, no Rio de Janeiro, disse que o sistema de justiça brasileiro não é para ninguém que vive na periferia. Para ela, esse sistema precisa de uma mudança profunda.

“Estamos vivendo um genocídio dentro do Brasil. Um número enorme de crianças e adolescentes vivem sem assistência e estão morrendo todos os dias”, declarou.

Primeira advogada indígena da região sul do Brasil e do povo kaingang, Fernanda Kaingang expôs o processo de crescente e massiva violação de direitos dos povos indígenas, que a atingiu pessoalmente também. Fernanda, que vivia na Terra Indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul, recebeu ameaças de morte por denunciar o esquema de arrendamento de terras da aldeia para o plantio de soja, principalmente.

“Neste momento estou refugiada. Estou há seis meses fora da minha aldeia. Caciques estão sendo cooptados por esse esquema e armados para que os indígenas se matem entre si”, denunciou.

Para a ex-presidenta Dilma Rousseff, essa realidade de violência e violação de direitos, de omissão e, em alguns casos, de cumplicidade do sistema de justiça está diretamente ligada aos mais de 300 anos de escravidão que o Brasil teve e que ecoam até hoje na sociedade.

“Não há como enfrentar a desigualdade no Brasil sem enfrentar esse tema. A nossa elite tem no seu DNA essa visão do negro e do indígena como coisas. Isso explica também o extermínio da juventude negra que ocorre em todos os estados da Federação.”

Ana Paula, Marinete, Fernanda e Dilma chamaram a atenção para a necessidade urgente de ampliar a organização e a participação social a fim de enfrentar o pensamento fascista que cresceu no Brasil, inclusive dentro do próprio sistema de justiça.

Marco Weissheimer é jornalista. Escreve mensalmente o Extra Classe.

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