OPINIÃO

Política e distância

Por Marcos Rolim / Publicado em 11 de maio de 2022

Imagem: Detalhe de Os pilares da sociedade/ George Grosz/ Domínio Público

Imagem: Detalhe de Os pilares da sociedade/ George Grosz/ Domínio Público

Há, pelo menos, três perguntas da política, cujas respostas são pressupostas pela ação:

1) O que deve mudar na realidade social?

2) Quais são as políticas públicas eficientes para tanto?

3) Quais são os limites aceitáveis de negociação para que as mudanças pretendidas se viabilizem?

A primeira e a terceira questões possuem uma natureza ético-política e formulá-las facilita compreender por que toda a perspectiva política que se aparta da ética – ou que é pensada em um ambiente próprio, como se a ação política fosse um gesto avulso – nos conduz à barbárie.

Para responder à primeira pergunta, é preciso mobilizar a ideia de justiça, porque não há forma de se inquirir sobre a mudança que não inicie pelo injusto.

Para responder à terceira pergunta, é preciso lidar com o que Weber designou como “ética da convicção” e “ética da responsabilidade”, mas já dentro dos cenários definidos pelas respostas à primeira pergunta.

As respostas à segunda questão dizem respeito aos meios necessários à intervenção pública, o que demanda o conhecimento e, por decorrência, determinadas qualidades técnicas ainda hoje ignoradas por grande parte dos gestores públicos.

As respostas à primeira pergunta separam conservadores e progressistas e as diversas posições à direita e à esquerda. As respostas à segunda pergunta condicionam as possibilidades da boa aplicação dos recursos públicos. Já as respostas à terceira pergunta permitem identificar competências morais.

Poderíamos identificar os “tipos ideais” (no sentido empregado por Weber) nos extremos das escalas em cada uma dessas questões, como:

a) no tema das mudanças: o reacionário e o revolucionário;

b) no tema das políticas públicas: o profissional e o amador, e

c) no tema dos limites morais: o delinquente e o estadista.

Esses tipos ideais não são paralelos, ou seja: não há correspondência entre as três escalas.

Nos extremos mencionados para as questões 1 e 3, por exemplo, reacionários e revolucionários podem ser delinquentes ou estadistas. Churchill foi um estadista e um reacionário; Mandela foi um revolucionário e um estadista; Stálin foi um revolucionário e um delinquente; o rei Leopoldo II foi um reacionário e um delinquente.

Como lidamos com um gradiente de condutas, é preciso ter presente que, em diferentes situações, as configurações da escala se movimentam, mas, raramente, para além das características de cada tipo ideal.

Assim, por exemplo, um político conciliador, hábil em encontrar soluções pragmáticas, mas desprovido de critérios morais, nunca conduzirá mudanças que rompam com elementos da dominação, exatamente porque opera com a estrutura, viabilizando os interesses do polo dominante.

Da mesma forma, um político movido por rígidos princípios morais, mas incapaz de fazer as concessões que podem alterar a correlação de forças, fragilizando a dominação, tampouco conseguirá construir circunstâncias mais favoráveis às mudanças. O primeiro fortalece a dominação porque a legitima, tornando-se, ele próprio, um dos seus agentes; o segundo, ainda que se mantenha apartado da dominação – com o que procura salvar sua alma –, a mantém, porque é incapaz de feri-la.

No caso brasileiro, penso que as respostas possíveis à primeira pergunta devem envolver, basicamente, cinco desafios:

  1. Reverter os processos de degradação ambiental.
  2. Reduzir substancialmente a desigualdade social.
  3. Reduzir a violência e a criminalidade.
  4. Enfrentar o racismo estrutural e
  5. Construir mecanismos eficientes anticorrupção.

Há, por óbvio, muitos outros temas decisivos que se desdobram a partir desses desafios, mas penso que a própria luta pela democracia, acossada no Brasil e em várias nações pelo avanço do fascismo, deve se dar com essa primeira matriz reguladora de metas civilizacionais.

Os cinco desafios propostos não são, é claro, consensuais, e é possível se pensar em outras composições igualmente legítimas. O que é especialmente preocupante, entretanto, é a distância que o mundo político brasileiro guarda deles, o que caracteriza, igualmente, parte significativa daquilo que fazem (ou deixam de fazer) as instituições públicas e as corporações privadas.

Um processo eleitoral é, por definição, uma oportunidade para projetar o futuro, o que, no caso brasileiro, parece se colocar da forma mais radical possível, porque, a depender dos resultados e das possibilidades trágicas já presentes em qualquer resultado, é o futuro que poderá se ausentar. O ponto é que o fascismo não é obra de um psicopata, de uma conspiração, ou de uma coalização de boçais. Ele exige uma dedicação histórica em favor da distância frente ao ideal civilizatório. Teremos tempo de reduzi-la?

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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