OPINIÃO

Vide bula

Por Fraga / Publicado em 16 de maio de 2022

Ilustração: Rafael Sica

Ilustração: Rafael Sica

Quem escreve as bulas? Ninguém sabe. Ninguém nunca viu ou conheceu alguém que escreva bulas. Nem há quem preencha seu currículo com “escritor de bula” no quesito atividade profissional.

As pessoas casam e moram juntas com coveiro ou com médico legista, mas não vivem com algum autor de bulas. É uma categoria profissional ultrassecreta. Nem agente secreto é tão secreto quanto um criador de bulas.

Sendo assim, completos desconhecidos atuam nas sombras. Fora do seu ambiente de trabalho, são insuspeitos da sua assustadora capacidade de produzir textos ininteligíveis. Talvez até façam poemas ingênuos. Suas listinhas de supermercado jamais deixam antever seu imenso poder de confundir o leitor de bula.

E onde trabalham esses caras? São seres solitários ou formam equipes? Ou os laboratórios os contratam para tarefas remotas, enviadas de porões ou sótãos inacessíveis ao resto da família?

Bah, perguntas bobas, inúteis, irrespondíveis.

O criador de bulas é um ser misterioso. Foi selecionado porque seus textos carecem de simplicidade narrativa, ricos em desinformação. E quanto mais incompreensíveis são seus parágrafos, mais encomendas recebem para bulas de diferentes medicamentos.

Não duvido que alguns sejam grandes alquimistas descritivos: hábeis em transformar uma bula em outra, trocando apenas a ordem das palavras! Talvez todas as bulas descendam de uma única bula, primeva, cheia de tentáculos vocabulares. E esses, extraídos da matriz, ganham vida própria, com sentido alterado, em remédio novo.

Para esses gênios do indecifrável, a glória pode variar entre o pavor dos pacientes e a admiração de médicos e balconistas de farmácia. E seu deleite supremo deve ir desde o menor corpo da fonte da bula impressa ao maior número de dobras da folha de papel de cada bula.

Tenho quase certeza que na maioria das bulas os efeitos colaterais são escritos pelo Stephen King. Ele recicla trechos de textos aterrorizantes não aproveitados em seus livros, para atender a grandes laboratórios farmacêuticos. Só Stephen King para combinar calafrios anais com perda da sensibilidade mandibular.

Não me alarmo apenas com o hermetismo das bulas. Me assombro igual com a profusão dos nomes de remédios: quem bola aqueles ciclins, timibas, dozanas, tixonas? A que conclusão chegarão os arqueólogos do futuro ao encontrarem nossas montanhas de lixo farmacêutico? Vão supor uma estranha língua morta? Ou irão erguer altares com as embalagens?

Agora preciso interromper a crônica. Tenho que abrir a caixinha de um recém-lançado beta bloqueador. Expectativa. Vai que a bula me engula.

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