OPINIÃO

A utilidade do inútil e a crise do ensino superior privado

Por José Luís Ferraro / Publicado em 25 de julho de 2022

Foto: Bengi Su Yıldız/Pexels

A utilidade do inútil: “Alguns desses gestores têm, de fato, alguma experiência em sala de aula, mas não muito apreço pela docência como profissão de fé”

Foto: Bengi Su Yıldız/Pexels

A utilidade do inútil – Um manifesto (Les Belles-Letres, 2013; Zahar, 244p.) é o título de um dos livros publicados pelo filósofo italiano Nuccio Ordine.

Basicamente, a argumentação do autor se concentra em torno da ideia de que é falsa a crença de que aquilo que é útil está tão somente associado a uma dimensão pragmática ou ao que aventa possibilidade de lucro – em que pese a racionalidade empresarial historicamente tenha modelado o senso comum em direção a isto: à valorização do indissociável binômio utilidade-lucratividade.

Nestes termos, há um corte produzido por uma ideia dominante que define na sociedade o que é útil e o que é inútil.

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E mais: criou-se um sistema de disposições simbólicas para tal, que é reproduzido como doxa nas instituições de ensino – sejam elas escolas ou universidades – cada vez mais rendidas ao modelo neoliberal, que sustenta esta ideia.

Conteúdos úteis

Se já na escola fala-se em conteúdos úteis, geralmente vinculados ao tecnicismo das ciências exatas; por exclusão, os inúteis tendem a ser aqueles associados às ciências humanas – vide o corte operado na carga horária nas disciplinas das humanidades no currículo.

Em contrapartida, no ensino superior – principalmente privado – o inútil parece estar associado aos cursos de graduação não superavitários ou aos programas de pós-graduação que, pelo menos desde o golpe de 2016, foram esvaziados por políticas obscurantistas e contrárias ao desenvolvimento da ciência.

Assim, repete-se o mantra como numa espécie de gozo coletivo: “não é o pós-graduação que paga a conta”; o suprassumo da incompreensão do papel social das universidades.

Valor de mercado

Em sua obra, Ordine, por sua vez, ressalta que o que é considerado inútil, geralmente está associado àquilo que nos torna melhores, mas que não tem valor de mercado.

No entanto, o modelo de pensamento forjado pelo capitalismo, bem como suas estratégias de captura dos sujeitos, produz uma espécie de desmentido.

Funciona como no conceito psicanalítico: enquanto sujeito, sabemos o que é melhor para nós, para nossa formação.

E isso inclui o papel das humanidades, do desenvolvimento do pensamento crítico, da pesquisa de ponta em diferentes áreas do conhecimento e o erro que é “descontinuar” (palavra da moda) programas de pós-graduação.

Porém, em nome de uma perversão capitalístico-empreendedora preferimos negar; desautorizamos a experiência porque, de uns tempos para cá, temos não apenas minimizado, mas zombado de uma barbárie institucionalizada que tem como produto o Brasil de 2022.

A pergunta que fica é: faz-se isto em nome do quê? Ou melhor, de quem?

A resposta é tão cristalina, quanto óbvia: de uma ideologia de mercado que produziu um modelo de sociedade que normaliza o fato das universidades (principalmente privadas) estarem deixando de ser universidades na verdadeira acepção da palavra.

Temos visto permanecer apenas o que é útil na moldura do negócio.

O ódio às universidades

Neste ínterim, o país não apenas emburrece como também embrutece – afinal, o ódio às universidades não só é um dos sintomas como também é o combustível do fundamentalismo contemporâneo que deseja a aniquilação seja da figura do professor, seja da figura do pesquisador.

Bastaria um esforço mínimo para imaginar os impactos futuros que o fechamento dos cursos de licenciatura, por exemplo, trará a médio prazo na formação estudantes na educação básica ou do encerramento das pesquisas de um Programa de Pós-Graduação.

Em um cenário diagnosticado com, no mínimo, uma década de antecedência, devemos perguntar quais foram as proposições ou estratégias adotadas pelas universidades privadas frutos de uma construção coletiva para que pudéssemos ter outra realidade hoje.

Talvez seja difícil de listar, principalmente com o aumento das decisões monocráticas evidenciadas desde a construção dos currículos com suas formulações que chegavam semiprontas: “professores, as disciplinas são estas; pedimos que escrevam as ementas, apenas”. E assim, o espaço de debate foi sendo extirpado.

A utilidade do inútil

Enquanto o movimento deveria ser de resistência e adaptação – principalmente nestes tempos bicudos, de afronta à democracia, quando a universidade deveria ser um dos faróis da sociedade –, vemos com tristeza e indignação o ensino superior privado sucumbir.

Professores e pesquisadores vão perdendo seus empregos, enquanto a vida útil de universidades tradicionais vai sendo abreviada por decisões de uma intelligentsia acadêmica não apenas incapaz de gerir uma crise em grande parte projetada – e que poderia ser mitigada pelo retorno das práticas de gestão democrática e análise de conjuntura – mas também ressentida.

É preciso admitir que também se paga um preço em se “profissionalizar” a gestão universitária: o de se gerir o que não se conhece; de se dispor de gestores “importados”.

Alguns desses gestores têm, de fato, alguma experiência em sala de aula, mas não muito apreço pela docência como profissão de fé.

Além de não valorizarem o que foi historicamente construído a duras penas nas universidades, têm como fetiche tomar decisões sem dialogar com a comunidade.

Talvez porque na sua visão de “negócio universitário” – e no melhor sentido do senso comum – isto, de fato, seja inútil.

No entanto, se o assunto é inutilidade, minha escolha é por Nuccio Ordine e sua proposição em relação à utilidade do inútil.

Nós, professores e pesquisadores, em que pese mais uma vez combalidos por uma realidade distópica que nos constrange, seja porque nos oprime ou porque simplesmente nos dá vergonha, ainda assim nos orgulhamos de sermos os “inúteis” que sempre – e com alguma razão – terão muito a dizer.

José Luís Ferraro é doutor em Educação, pesquisador e professor universitário. Bolsista Produtividade do CNPq.

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