OPINIÃO

O mundo dos bichos de Nélida Piñon

Por Moisés Mendes / Publicado em 23 de dezembro de 2022

Foto: Acervo Pessoal/ Reprodução

“Suzy e Pilara teriam ficado milionárias por decisão do inventário de Nélida Piñon, que morreu em Portugal. Mas não era bem assim”

Foto: Acervo Pessoal/ Reprodução

Escritora famosa decide deixar de herança para duas cadelinhas seus quatro apartamentos de luxo no Rio. Pronto. Uma frase vira uma controvérsia.

Suzy e Pilara teriam ficado milionárias por decisão do inventário de Nélida Piñon, que morreu em Portugal. Mas não era bem assim.

As cadelinhas deveriam desfrutar até a morte dos benefícios dos imóveis, que ficariam na verdade com Karla Vasconcellos, amiga e acompanhante de Nélida.

A primeira questão controversa seria a mais óbvia: por que tanta riqueza para dois animais? É um debate interminável, com todas as abordagens possíveis.

Mesmo que, no fim, os bens sejam assumidos pela herdeira que cuidará das cadelinhas.

A segunda questão é: nós podemos saber e nos intrometer nas decisões privadas de alguém, mesmo que tenham sido tornadas públicas?

Esse é o bom debate. Os que se dedicam a interditar conversas nas redes sociais tentaram fazer alertas com ar de sapiência.

A advertência era essa: não se metam na privacidade de quem, sendo rico ou pobre, deixa o que tem para quem quiser.

A segunda parte do alerta, sobre a decisão de Nélida, é inquestionável. Ela fez o que quis com os imóveis.

A primeira parte, sobre a recomendação para que não se debata a decisão, é mais complexa. Nélida presidiu a Academia Brasileira de Letras, era figura pública.

Poucas obras são tão expostas quanto a literatura produzida por alguém. E a literatura de Nélida só existe porque ela faz relatos ficcionais de vidas privadas inspiradas em vidas verdadeiras.

Sua decisão sobre a herança vai para o escrutínio público, porque é assim que a vida funciona. A vida de gente que é notícia é muito mais pública do que privada.

A literatura, o cinema, a micro-história e o jornalismo não existiriam sem relatos de vidas particulares, únicas, individuais.

E o inventário que transfere bens a duas cadelinhas trata de humanos, não de animais.

Se vidas privadas fossem interditadas, não existiriam os relatos bíblicos. Não existiria O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, uma das maiores obras da literatura.

Não existiriam Cidadão Kane e O Poderoso Chefão, considerados os dois maiores filmes de todos os tempos.

É a vida privada que nos oferece boa parte da compreensão do que foi o Brasil do Império e dos escravagistas brasileiros e de como exerciam o seu poder sobre escravos e escravas, muitas das quais subjugadas como amantes.

Nélida Piñon nos oferece depois de morta, pelo jornalismo que expôs sua decisão, uma aula do que é a micro-história, a história que nos ajuda a entender fatos, contextos e personagens pelos detalhes aparentemente miúdos e específicos.

É o micro, e não só de famosos ou personalidades públicas, que nos ajuda a entender a vida de alguém no seu tempo e nos seus espaços coletivos.

Essa é a matéria-prima também do jornalismo. Assim ficamos sabendo o quanto pode ser comum a vida de quem dedicava muito do seu tempo a duas cachorrinhas.

São reducionistas os que, num aparente lance de esperteza e de correção ética, empurram esse e outros casos para o compartimento das fofocas e das banalidades.

A revelação de detalhes da vida de uma escritora não pode ser confundida com a exposição de intimidades, no sentido de devassar ou violar informações que atentem contra a sua dignidade.

Não é o caso. A decisão foi tornada pública pela beneficiária, e bem provável que com o consentimento prévio da escritora. O debate se dá na esfera pública, sempre em torno da controvérsia criada.

Ninguém invadiu a casa de Nélida, nem feriu seus sigilos, seus segredos ou o direito de estar só, mesmo depois de morta.

O debate é bom, porque passa por questões diversas e pode levar a considerações éticas. Mas não pode ser censurado em nome de falsos moralismos.

Uma escritora sem filhos e sem parentes, que define seus animais como beneficiários dos seus bens até morrerem, deixa informações preciosas sobre quem era e como vivia.

Não para ser julgada, mas para ser melhor entendida num mundo em que dois cães podem transmitir e merecer mais afeto e cumplicidade do que dezenas de humanos.

O que o jornalismo ainda não fez, mas deveria ter feito, é nos contar mais sobre Karla Vasconcellos. Ela é a herdeira de Nélida.

A própria Karla já revelou que, além dela, há uma outra pessoa, que ficaria com os bens se, na sequência, morressem Nélida e Karla.

Nélida deixou, com o testamento, o esboço de um romance, para que seus leitores se divirtam também com os mistérios da sua morte.

Moisés Mendes é jornalista. Escreve quinzenalmente para o Extra Classe.

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