OPINIÃO

A escola e os algoritmos da violência

Por Cristiano Fretta / Publicado em 24 de abril de 2023

Foto: Standret/ Freepik

“A radicalização da violência e as recentes ameaças de massacres em ambientes educativos só podem ser compreendidas à luz de uma quase total e irrestrita liberdade enunciativa defendida e propagada pelos algoritmos das redes sociais”

Foto: Standret/ Freepik

O ano era 1994. Eu estava na primeira série e recém esboçava as primeiras letras. Minha rotina escolar era repleta de desenhos, massinhas, brincadeiras e músicas divertidas.

Era muito bom ir à escola. Todo dia, ao final da manhã, minha mãe ia me buscar: quando o sinal rompia estridente pelos corredores, não era sem um pouco de ansiedade que eu a procurava no meio de tantos outros pais que, assim como ela, iam buscar seus filhos naquela escola particular na zona norte de Porto Alegre.

Minha mãe sempre me beijava e me dava a mão. Eu me sentia seguro em sua companhia e caminhava chutando pedrinhas pelo trajeto de quatro quadras até nossa casa, onde eu almoçaria, veria Chaves e Chapolin, faria os temas e brincaria.

Mas houve um dia em que foi diferente.

Naquele dia, na saída da escola, dois alunos do então chamado Segundo Grau começaram a se empurrar do outro lado da rua.

A princípio, não havia nada demais naquilo, uma vez que o empurra-empurra é uma constante no pátio de qualquer escola.

No entanto, quando um dos empurrados lentamente colocou sua mochila no chão, abriu-a e de dentro dela tirou uma corrente com um cadeado em uma ponta, uma barreira se rompeu no quesito violência.

Minha mãe me puxou pelo braço. Me vi obrigado a caminhar, mas pude observar toda a cena: um rapaz de cabelos compridos enrolou parte da corrente na mão, começou a girá-la no ar e partiu para cima do outro, um guri gordinho de cabelos loiros.

Ele tentou se defender, abaixou a cabeça. O outro girava a corrente cada vez mais rápido: deu para ouvir quando o cadeado se chocou contra sua têmpora. Cambaleou, levou uma mão ao rosto, enquanto tentava se defender com a outra mão de mais um golpe que o seu oponente preparava.

Os colegas em volta tentaram imobilizar o agressor, mas ele foi mais rápido. De repente o mesmo som de novo: o cadeado explodindo mais uma vez contra a cabeça do infeliz.

Minha mãe me puxava com mais força. Os colegas conseguiram imobilizar o agressor, que gritava palavrões, a corrente caída no chão, os “guardinhas” saindo de dentro do colégio, correndo para o outro lado da rua.

“Vamos para casa, Cristiano”, minha mãe dizia.

No entanto, eu não conseguia tirar os olhos daquele jovem ferido que, confuso, certamente tonto, olhava em volta tentando entender o que havia acabado de acontecer.

E eu, ali, afastando-me da cena, protegido por minha mãe, tentava compreender como era possível que alguém levasse uma corrente com um cadeado para escola (será que no Segundo Grau as professoras pediam isso para a aula?).

Também tentava entender como era possível que o uniforme cinza daquele rapaz gordinho e loiro – o mesmo uniforme que eu usava naquele momento, mas bem maior que o meu – pudesse ficar enxarcado de sangue.

Anos mais tarde, no ensino médio, quando fui estudar Força Centrípeta, não podia deixar de lembrar daquela cena.

O professor de física enchia o quadro de explicações e vetores, usava várias cores de giz, mas tudo me parecia um tanto quanto “frio”.

Para mim, aquele conteúdo só fazia sentido quando eu me lembrava da primeira experiência que tive com violência escolar em minha vida.

Em uma dessas aulas de física, cheguei a pensar em levantar a mão e relacionar a matéria à lembrança do acontecido tantos anos antes, na mesma escola.

No entanto, dois fatores me levaram a permanecer em silêncio. Em primeiro lugar, minha velha amiga: a timidez. Em segundo, na semana retrasada dois colegas meus, que por acaso se sentavam bem atrás de mim no espelho de classe, haviam terminado o recreio aos socos no chão, tudo por causa de uma guria da outra turma.

Sim, era melhor fazer de conta que força centrípeta era apenas força centrípeta.

Hoje, como professor de ensino médio, imerso no olho do furacão das ameaças de massacres que rondam as salas de aula de norte a sul do Brasil, não posso deixar de ponderar algumas coisas.

Penso, em primeiro lugar, que a sala de aula é um lugar em que as litigâncias tendem a aparecer de forma quase natural.

Afinal de contas ali convivem por inúmeras horas crianças, pré-adolescentes ou adolescentes em um ambiente físico relativamente restrito, mediado por pessoas mais velhas que, por mais qualificadas e bem-intencionadas que sejam, representam uma relação de poder verticalizada frente a faixas etárias que naturalmente desafiam essas relações de poder.

Portanto, atritos, mais ou menos violentos, são esperados.

Para além disso, a escola é um ambiente de reverberação de relações familiares/sociais em que emoções, anseios, desejos, frustrações vêm à tona e, dessa forma, misturam contexto de estudantes com perfil de professores – tudo isso à luz (na verdade, normalmente à sombra) de um emaranhado de documentos e normativas legais que em sua maioria cumprem um papel mais figurativo do que real, isso é, dificilmente se perspectivam um mundo palpável, principalmente quando pensamos sobre políticas públicas e ensino público.

A mercê dos algoritmos

No entanto, há algo de novo nas ameaças que estamos vivendo: estamos expostos a algoritmos extremamente complexos que nos tornam vítimas do funcionamento de redes sociais.

A radicalização da violência e as recentes ameaças de massacres em ambientes educativos só podem ser compreendidas se forem perspectivadas à luz de uma quase total e irrestrita liberdade enunciativa defendida e propagada pelos algoritmos das redes sociais.

Dito de outra forma, o “ultraliberalismo” (seja lá o que isso queira dizer) talvez tenha alcançado sua expressão mais genuína nas redes sociais, uma vez que a circulação de interlocução e informações se dá sem praticamente nenhum freio regulamentador.

Sempre é necessário dizer que liberdade de expressão não significa anarquismo de enunciação da mesma forma que liberdade de ir e vir não quer dizer a ausência de semáforos em nossos cruzamentos.

Por isso, o Estado precisa edificar ações sólidas de responsabilização das big techs, em uma espécie de visão keynesiana de interferência no ultraliberalismo enunciativo, que, em última instância, é uma potente ferramenta do capitalismo de vigilância, na medida em que mapeia perfis de populações inteiras com o intuito não só de vender anúncios, mas também de manipular opinião pública e política.

A regulamentação é urgentíssima. Cumpre ao Estado essa tarefa.

Corremos o sério risco de termos a culturalização do medo de atentados em escolas de nosso país. E não é sem o aval dos algoritmos das redes sociais que chegamos a essa situação. Não se constrói cultura da paz apenas com amenidades, abraços e cartazes coloridos: a paz se faz com leis duras. Que as grandes empresas de tecnologias consigam compreender isso e, de uma forma ou outra, parem de monetizar conteúdo de ódio.

Cristiano Fretta é professor de Português e Literatura.

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