OPINIÃO

A menina que virou mãe

Por Moisés Mendes / Publicado em 14 de junho de 2023
A menina de 13 anos que cuidou dos irmãos na selva colombiana, durante 40 dias, não assumiu a liderança do grupo apenas porque era a “mais velha”

Foto: Forças Militares da Colômbia/Twitter/ Reprodução

“A menina não cuidou dos irmãos só porque os outros se submetiam às ordens dela por antiguidade”

Foto: Forças Militares da Colômbia/Twitter/ Reprodução

A menina de 13 anos que cuidou dos irmãos na selva colombiana, durante 40 dias, não assumiu a liderança do grupo apenas porque era a “mais velha”.

Lesly não cuidou dos irmãos Soleiny, de nove anos, Tien, de quatro, e Cristin, de um ano, só porque os outros se submetiam às ordens dela por antiguidade.

Os avós dela disseram que a menina cuidou dos irmãos menores porque é menina. As meninas muinanes, da etnia uitoto, são assim.

Lesly Jacobombaire Macutuy cuidou dos irmãos porque meninas muinanes nascem para cuidar dos outros, não por submissão, mas porque são determinadas e destemidas.

Os avós diziam, antes das crianças serem encontradas, que elas iriam sobreviver porque estavam com a irmã. Sobreviveriam por causa da sua sabedoria precoce em lidar com as coisas da mata e porque assumiria o papel da mãe Magdalena, que morrera no acidente.

E agora passem a imaginar o que Lesly fez durante esses 40 dias para manter todos agrupados, para controlar choros e aplacar dores, para achar água e comida, para dar a comida, para decidir que hora deveriam dormir, que hora acordar, para que lado andar.

Não superestimem a explicação dada por gente que conhece a floresta e que dá a entender que as quatro crianças estavam seguras no seu ambiente, que ali é a vida delas.

Não, não é ali. Os indígenas colombianos do grupo das crianças perdidas não vivem no meio da floresta densa ali onde elas caíram.

E nenhuma criança, em lugar algum, na selva, em Salvador, em Nova York ou no Ártico, estará segura sozinha.

Elas sobreviveram porque sabiam onde estavam, mas não leve em conta os que dizem que elas estavam bem. Mais alguns dias e elas estariam mortas.

Conviveram com cobras, aranhas, onças, macacos, mosquitos. Mas assim é a vida delas. Não, não é assim. Não sozinhas e sem rumo.

Não subestimem a grandeza de Lesly como mãe dos irmãos. Pensem numa situação parecida em que quatro crianças sem pai e sem mãe estão perdidas numa área sem moradores de uma favela carioca.

É o seu ambiente, mas não é natural que estivessem sozinhas. Nenhuma criança estará bem em seu ambiente sem que um adulto a proteja, por mais relapso que seja esse adulto.

Irmãos sem mãe têm irmãs que os criaram como se fossem suas mães. É o que as mulheres conseguem mais do que os homens.

São irmãs que se transformam em mães. Quem lê esse texto agora conhece uma, duas, várias irmãs que protegem irmãos dos medos do mundo, dentro e fora de casa. Que dão de comer, que lavam suas roupas.

As crianças indígenas iriam sobreviver por 40 dias sem a sabedoria de Lesly? Sobreviveriam sem uma menina no grupo? Saberiam gerir a escassez, a fome, a disputa pelas sobras?

Um guri saberia cuidar do irmão com 11 meses, que completou um ano enquanto estava perdido na floresta? Que povo branco veria quatro crianças brancas sobreviverem sozinhas por 40 dias logo depois de assistirem à morte da mãe?

E aí estão elas, todas vivas, bem na hora em que circulam pelo mundo pesquisas sobre o aumento do machismo por toda parte. Na Alemanha, no Japão, na própria Colômbia.

Na Alemanha, a organização de ajuda humanitária e desenvolvimento Plan International Deutschland descobriu que 33% dos homens pesquisados acham “aceitável” bater em mulher.

Seriam esses homens sujeitos maduros ou idosos vindos prontos como machos do século 20? Não, são homens de 18 a 35 anos do século 21.

Desses mesmos homens, 55% entendem que seu papel é ganhar o suficiente para que a mulher cuide apenas da casa. Sim, na Alemanha.

As crianças muinanes sobreviveram na selva, sob o comando da irmã, não só porque esse é uma missão feminina, mas porque Lesly era a líder delas.

São os avós das crianças que repetem o que diziam antes da localização dos netos. Lesly iria salvar os irmãos. Porque é forte, é determinada e sabe o que fazer.

E agora ficamos sabendo que o marido de Magdalena, o pai de duas das crianças, batia na mãe delas. E que talvez um juiz, possivelmente um macho branco, irá decidir com quem elas irão ficar.

Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.

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