OPINIÃO

A imaginação fora do poder

Por Marcos Rolim / Publicado em 12 de julho de 2023

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Arquivo/ Agência Brasil

“movimentos de protesto abrem janelas de oportunidade. Eles demandam respostas ao Poder Público e essas respostas também os formatam”

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Arquivo/ Agência Brasil

As Jornadas de Junho de 2013 representaram a maior mobilização popular na história do Brasil desde a campanha pelas eleições diretas em 1984; com a diferença marcante de que a campanha pelas diretas foi organizada por uma frente política institucional de oposição à ditadura, que convocou as manifestações em apoio à emenda que propunha a volta das eleições diretas para presidente e que seria apreciada pelo Congresso Nacional. 

Em junho de 2013, não havia lideranças orgânicas, nem partidos à frente das mobilizações e nenhuma expectativa com relação a uma votação no Parlamento.

Milhões de pessoas foram às ruas, articuladas pelas redes sociais, para expressar seu descontentamento diante da precariedade dos serviços públicos; não casualmente no momento em que os governantes anunciavam, em um clima de ufanismo, grandes investimentos para receber a Copa do Mundo e a Olimpíada.

Para compreender os protestos, é preciso, preliminarmente, dimensionar o impacto das interações on-line e o quanto a formação de opinião – e, portanto, da disputa política – se afastou dos veículos tradicionais de comunicação para se estabelecer no mercado de comportamentos futuros na Internet.

Isso se deu pelo agenciamento por algoritmos e na constituição de infinitas bolhas virtuais que sequestraram o debate público, um tema que, ainda hoje, parece não ter sido apresentado aos setores hegemônicos da esquerda, mas que a extrema-direita domina desde muito antes de 2013.

As mobilizações começaram por reivindicações difusas contra o reajuste das tarifas do transporte coletivo, articuladas pelo “Movimento Passe Livre”. A ideia de “Tarifa Zero” foi, então, desprezada pelos governantes e pela mídia tradicional. Dez anos depois, aquela imaginação do movimento já é realidade em algumas cidades brasileiras e constitui uma pauta central a respeito do futuro do transporte coletivo no mundo. As Jornadas de Junho ocorreram simultaneamente em mais de 500 cidades e contaram, segundo pesquisas da época, com o apoio de 89% da população.

Junho de 2013 começou muito antes e terminou bem depois. Já em março, muitas mobilizações “de borda” ocorriam no vácuo de uma plataforma que pudesse oferecer à juventude e aos movimentos sociais um espaço claro de luta por reformas.

As Jornadas surgem no coração de uma democracia sem política, aquela onde programas e pretensões por reformas devem se curvar aos cálculos e ao cinismo. Esse vazio criou a orfandade que foi às ruas cobrar a conta. E ela veio com muitas caras e cores, aglutinando demandas e expectativas diversas que carregavam, é claro, ambivalências e contradições.

Poder e repressão

A única resposta coerente do poder público às manifestações, entretanto, foi a repressão. Os relatórios da Artigo 19, ONG que luta pela liberdade de expressão, mostram que, em 699 protestos, houve oito mortos, 837 feridos e mais de 2,6 mil pessoas presas. Entre os feridos, mais de cem jornalistas. Na imprensa e no discurso dos governantes, porém, houve o mesmo silêncio a respeito da violência policial e, por certo, a aposta de que cassetetes, bombas de gás e balas de borracha resolveriam “o problema”. Não resolveram; pelo contrário, as manifestações cresceram por conta da repressão.

Passados dez anos, seria importante aprofundar o debate sobre as Jornadas de Junho, senão por outros motivos, porque suas causas não foram superadas. Os espaços de reflexão sobre os significados daqueles dias seguem, contudo, rarefeitos, porque as posições hegemônicas da esquerda, que ficaram catatônicas diante das mobilizações, produziram as mais desarrazoadas interpretações, desde a ideia de que os protestos teriam sido “organizados pela CIA”, até as diferentes versões da autoindulgência pelas quais os limites e os erros de sua própria responsabilidade nunca podem ser reconhecidos, sequer debatidos.

Os mesmos setores renovam essa conduta agora, com a falácia ad hoc ergo propter hoc (depois disso, logo, causado por isso), quando reproduzem a noção de que as mobilizações “resultaram” no impeachment e no bolsonarismo, o que, além de contrariar todas as evidências disponíveis, impede essa mesma esquerda de corrigir os seus equívocos e se reencontrar com a imaginação presente na luta por uma outra política e um outro mundo.

Na verdade, movimentos de protesto abrem janelas de oportunidade. Eles demandam respostas ao poder público e essas respostas também os formatam. Nada está definido ao início de uma jornada de protestos massivos, precisamente porque as ruas são espaços de reconfiguração radical da política, mas os posicionamentos assumidos pelos governantes fazem uma enorme diferença.

Junho de 2013 foi quando o descolamento da sociedade civil e do sistema político brasileiro se tornou evidente. Teria sido possível reformar a institucionalidade política brasileira, corrigindo algumas de suas mais evidentes distorções se as respostas do Estado tivessem sido outras? Talvez. A recente experiência chilena mostra a complexidade de movimentos de reforma política que emergem das ruas, mas, ao mesmo tempo, assinala o quanto os protestos massivos costumam estar grávidos de um novo mundo.

Caberia, no entanto, uma indagação anterior: se as reformas não são feitas quando milhões demandam por elas nas ruas, as faremos quando?

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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