Unesco alerta sobre uso excessivo das tecnologias educacionais
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A Unesco publicou no dia 26 de julho o Relatório Global de Monitoramento da Educação 2023 abordando o tema da Tecnologia na Educação: Uma ferramenta a serviço de quem?
Trata-se de um alerta, principalmente, sobre o uso excessivo, intensivo e como as ferramentas tecnológicas estão fazendo parte do cotidiano da sala de aula.
O relatório reconhece a importância das tecnologias, porém aponta algumas ressalvas.
Destaca que as evidências sólidas e imparciais do impacto da tecnologia educacional são escassas e que existem poucas evidências robustas do valor agregado da tecnologia digital na educação.
Alerta que boa parte das evidências são produzidas pelos que estão tentando vendê-las e que a tecnologia pode ser uma salvação para a educação de milhões, mas exclui muito mais pessoas.
Ainda segundo o documento, a tecnologia acessível e o design universal criaram oportunidades para estudantes com deficiências.
Evidencia que o ensino on-line evitou o colapso da educação durante o fechamento das escolas na pandemia da covid-19 e o direito à educação, cada vez mais, é sinônimo de direito à conectividade adequada.
No entanto, há desigualdade no acesso, e a tecnologia digital aumentou de forma dramática o acesso a recursos de ensino e aprendizagem, no entanto, a tecnologia deveria se concentrar em resultados de aprendizagem, e não em contribuições digitais, ressalta.
Os especialistas chamam a atenção, também, para situações identificadas, apontando que o ritmo acelerado das mudanças na tecnologia tem pressionado os sistemas de ensino a se adaptarem seguidamente.
Muitos estudantes, aponta a Unesco, não têm as oportunidades para usar tecnologias digitais em práticas escolares e os professores, muitas vezes, se sentem despreparados e pouco seguros para dar aulas usando tecnologia e conteúdo digital é produzido por grupos dominantes, o que afeta quem o acessa.
Identificou-se que quase 90% do conteúdo disponível em repositórios de educação superior com coleções de recursos de educação aberta foram criados na Europa e na América do Norte e 92% do conteúdo da biblioteca global OER Commons está em inglês. Há uma hegemonia das ferramentas, conteúdos e da epistemologia do Norte sobre a do Sul.
Educação superior
A educação superior é o setor que está adotando tecnologias digitais mais rápido e o que mais está sendo transformado por ela.
Havia mais de 220 milhões de estudantes frequentando cursos abertos on-line e massivos em 2021.
Mas as plataformas digitais ameaçam o papel das universidades e representam desafios regulatórios e éticos, por exemplo, com relação a promoções exclusivas de assinaturas, além de dados de estudantes e funcionários.
A expansão do Ensino Superior (ES) no Brasil no período de 1991 até 2021 foi 475%, sendo 619% no ensino superior privado e, 245% no ensino público.
Atualmente, a expansão no ES somente se mantém impulsionada pela EaD, que cresce no segmento privado, cujos ingressantes superam as matriculados nos cursos presenciais.
Licenciaturas
Os cursos relacionados à formação docente em Educação a Distância (EaD), como Pedagogia e Licenciaturas, apresentaram um crescimento de 109,4% de concluintes na rede privada, no período de 2010 e 2020.
No mesmo período, diminuíram os concluintes na modalidade presencial, em ambas redes (pública e privada), sendo a queda na rede privada é bem maior.
Nas licenciaturas, especialmente Pedagogia, 61,1% dos formandos são em EaD, enquanto nos demais cursos são 24,6%.
Deste cenário emerge uma questão central: qual é a qualidade desta formação de nossos docentes responsáveis pela alfabetização das crianças brasileiras?
“A revolução digital possui um potencial imensurável, mas, assim como foram feitas advertências sobre como ela deve ser regulamentada na sociedade, atenção semelhante deve ser dada à maneira como ela é usada na educação”, destaca Audrey Azoulay, diretor Geral da Unesco.
“Seu uso deve ser para experiências aprimoradas de aprendizado e para o bem-estar de alunos e professores, não em seu detrimento. As conexões on-line não substituem a interação humana.”
Tecnologia na educação
O relatório termina destacando que o papel da tecnologia na educação vem provocando um intenso debate há muito tempo.
Este debate foi ampliado pelo fechamento de escolas durante a covid-19 e pelo surgimento da inteligência artificial generativa, mas questiona: a tecnologia democratiza o conhecimento ou ameaça a democracia ao permitir que alguns poucos selecionados controlem as informações?
Ela oferece oportunidades ilimitadas ou leva a um futuro sem retorno e dependente da tecnologia? Ela promove a igualdade ou agrava a desigualdade? Ela deve ser usada no ensino de crianças pequenas ou representa um risco para o seu desenvolvimento?
Estudos e pesquisas no campo da educação já apontam riscos e excessos do grande “mercada global da educação” em continuar expandindo esta lógica de educação por meio de plataformas digitais.
Os professores António Nóvoa e Yara Cristina Alvim apresentam uma forte crítica a três ilusões perigosas empoderadas a partir da educação virtual na pandemia:
- a ilusão de que a educação está em todos os lugares e em todos os tempos, e que acontece “naturalmente” num conjunto de ambientes, sobretudo familiares e virtuais;
- a ilusão de que a escola, como ambiente físico, acabou e, a partir de agora, a educação terá lugar sobretudo “a distância”, com recurso a diferentes “orientadores” ou “facilitadores” das aprendizagens;
- a ilusão de que a pedagogia, como conhecimento especializado dos professores, será substituída pelas tecnologias, “dopadas pela inteligência artificial”.
Em alternativa às pressões do mercado da educação e a essas “ilusões”, salientam que a educação implica sempre uma intencionalidade, obriga a um esforço de construção, de criação e de composição das condições, dos ambientes e dos processos propícios ao estudo e ao trabalho dos alunos.
É esse esforço que define o papel dos professores na construção de um espaço público comum da educação e na criação de novos ambientes escolares, promovendo uma pedagogia do encontro entre estudantes e educadores.
A técnica, em geral, não é boa nem má, nem neutra, nem necessária, nem invencível.
É uma dimensão, recortada da mente humana, de um devir coletivo heterogêneo e complexo na “cidade do mundo”.
O que determina seu sentido e benefício é o uso e o fim que nós, seres humanos, lhe atribuirmos.
Quanto mais reconhecermos isto, mais nos aproximaremos do advento de uma tecnodemocracia.
Transformação do mundo
Pierre Lévy, filósofo e sociólogo francês, alerta e questiona que na era do planeta unificado, dos conflitos mundializados, do tempo acelerado, da informação desdobrada, das mídias triunfantes e da tecnologia multiforme e onipresente, quem não sente que é preciso repensar os objetivos e os meios da ação política?
A integração plena das escolhas técnicas no processo social, educacional e democrático é um elemento chave da necessária mutação política.
Lévy afirma que nos tempos atuais a técnica é uma das dimensões fundamentais onde está em jogo a transformação do mundo humano por ele mesmo.
A incidência cada vez mais pregnante das realidades tecnoeconômicas sobre todos os aspectos da vida social, inclusive da educação, e também os deslocamentos menos visíveis que ocorrem na esfera intelectual, obrigam-nos a reconhecer a técnica como um dos mais importantes temas filosóficos e políticos de nosso tempo.
Na escala da vida humana, estes agenciamentos sociotécnicos constituem um fundo sobre o qual se sucedem os acontecimentos políticos, militares e científicos mais importantes.
Essência da técnica
Outro filósofo, o alemão Martin Heidegger, também tratou do tema no texto A questão da Técnica, em 1959.
Já naquela época afirmava que a técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica, pois a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico.
Alertava que, por todos os lados, permaneceremos sem liberdade, atados a ela.
Mas de modo mais triste estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro, pois essa representação, à qual hoje em dia se adora prestar homenagem, nos torna complemente cegos perante a essência da técnica.
Dizia Heidegger que a essência da liberdade, originariamente, não está ordenada segundo a vontade ou apenas segundo a causalidade do querer humano.
A liberdade está num parentesco mais próximo e mais íntimo com o acontecimento do desabrigar, isto é, do conhecimento da verdade.
A ameaça dos humanos não vem primeiramente das máquinas e aparelhos da técnica, cujo efeito pode causar a morte. A autêntica ameaça já atacou o homem na sua essência, sentencia Heidegger.
Retornando a relação da educação com as técnicas, é preciso dizer que as tecnologias, por si só, não educam ninguém.
No entanto, as questões tecnológicas não são apenas tecnológicas, são pedagógicas e são políticas.
Nesta perspectiva, cabe renovar o questionamento que fez Gert Biesta: “chegou a hora de desistir da escola moderna, e das suas promessas, entregando-a nas mãos da Pearson, da Google e de outros capitalistas educacionais, ou devemos tentar uma vez mais e, nesse caso, o que devemos fazer?”.
As ilusões da “casa” (ensino domiciliar) e das “tecnologias” alimentam-se mutuamente e transportam uma terceira ilusão: com recurso ao digital e graças a um acompanhamento por parte dos pais, ou de algum “tutor”, as aprendizagens aconteceriam de modo natural ou espontâneo. É uma ilusão perigosa e errada.
Num dos grandes livros da pedagogia contemporânea, La Mystification Pédagogique, Bernard Charlot explica que “a educação não se pode fazer por simples imersão da criança no meio social”, pois é necessária “uma mediação entre a criança e os modelos sociais”.
É preciso repensar a escola enquanto um espaço público comum e professores construtores deste espaço. São eles que, em proximidade com as famílias, os poderes locais, as entidades públicas e privadas, podem construir as condições para uma capilaridade educativa baseada no comum e na convivialidade.
Aprender e estudar em comum é a melhor forma de promover uma vida em comum, uma sociedade convivial.
A educação precisa caminhar junto com a ciência e a tecnologia.
A pedagogia é sempre uma relação humana.
O digital pode ser útil para manter os laços, mas as tecnologias nunca substituirão o encontro humano que permeia a escola, os educadores e os estudantes. Precisamos usar a tecnologia como meio para nossos fins e não sermos usados e manipulados pelas tecnologias e pelas redes sociais.
Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.