OPINIÃO

Ciência e escândalo

Por Marcos Rolim / Publicado em 14 de setembro de 2023
Ciência e escândalo

Imagem: Brookings.edu/Reprodução

“Há os que acreditam em QAnon, a fantástica conspiração do ‘Estado profundo’; quem suspeite que uma vacina produzida na China possa introduzir um chip nas pessoas e ainda quem procure o apoio de discos voadores para seus objetivos golpistas” ciência

Imagem: Brookings.edu/Reprodução

Entre as muitas limitações presentes na formação cultural média do Brasil, destaca-se o baixo nível de informação sobre ciência.

Os dados são estarrecedores, e estudos internacionais já situaram o Brasil entre os países em que a percepção da realidade é mais distorcida.

Pesquisa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), de 2021, mostrou que, para 54% dos jovens brasileiros (15 a 24 anos), os cientistas podem estar exagerando quanto aos efeitos das mudanças climáticas; outros 40% não concordam que os humanos evoluíram e descendem de outras espécies, e 25% entendem que vacinar crianças pode ser perigoso.

Essa situação piorou muito nos últimos anos por conta do avanço do fundamentalismo religioso no Brasil e pelo negacionismo promovido pela extrema direita que ataca a ciência, desconstruindo o conhecimento histórico, amparando movimentos antivacina e sustentando que o aquecimento global é uma farsa.

A ignorância sobre a ciência está presente não apenas entre os menos letrados.

Grande parte da elite nacional – políticos, operadores do direito, empresários, militares, lideranças sindicais, profissionais liberais, etc. – desconhece o método científico e não faz ideia de como se produz o conhecimento que tornou possível a vida moderna.

O período pandêmico, aliás, mostrou as graves limitações na formação científica de muitos médicos brasileiros, que estimularam o uso de medicamentos ineficazes para o tratamento da Covid, mesmo depois que estudos clínicos randomizados controlados já haviam evidenciado sua inutilidade e seus riscos.

Nesse quadro, há espaço para todo o tipo de crendice e superstição, um terreno fértil e muito lucrativo para a picaretagem.

O problema, claro, não é apenas do Brasil

Foto: Divulgação

Foto: Divulgação

Em todo o mundo, há quem esteja disposto a acreditar em “memória da água”, em “cura pelas mãos”, em “abdução por alienígenas”, em parentes mortos que surgem em “campos quânticos de informação”, em “deuses astronautas” ou mesmo que a “Terra é plana”.

Há os que acreditam em QAnon, a fantástica conspiração do “Estado profundo”; quem suspeite que uma vacina produzida na China possa introduzir um chip nas pessoas e ainda quem procure o apoio de discos voadores para seus objetivos golpistas.

A irracionalidade contemporânea não é o mesmo que a loucura, mas será cada vez mais difícil separar os dois fenômenos sem a denúncia da bobagem que se pretende passar por informação ou conhecimento.

Natalia Pasternak e Carlos Orsi lançaram, recentemente, Que bobagem, pseudociência e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (Contexto, 336 p.), um livro que poderia promover ótimos debates, mas que tem produzido mais xingamentos do que argumentos.

O trabalho analisa a base teórica e as evidências científicas a respeito de Astrologia, Homeopatia, Acupuntura, Medicina Tradicional Chinesa, Curas naturais, Curas energéticas, Reiki, Constelações familiares, Paranormalidade, Pensamento positivo, entre outros temas, sustentando que os alegados saberes dessas práticas ou perspectivas são insustentáveis diante da ciência, além de potencialmente danosos.

Cada uma das críticas feitas pelos autores pode e deve ser contestada, e a forma de fazê-lo em debates científicos é oferecer evidências mais fortes.

Foi o que fez, por exemplo, o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira em debate com Carlos Orsi, promovido pela Unicamp.

Ao contestar as críticas feitas no livro à Psicanálise, Pereira mostrou algumas evidências divulgadas em artigos publicados em revistas científicas de alta qualidade, como Nature e Science, que amparam determinados pressupostos freudianos.

Seus argumentos não encerraram o debate, mas surpreenderam Carlos Orsi que desconhecia os artigos, o que deu ao psicanalista uma constrangedora vantagem.

A ciência depende desse tipo de debate, porque ela produz o conhecimento que, por definição, se sabe limitado.

Morin talvez tenha produzido a melhor síntese a respeito dessa característica ao dizer que “a verdade científica é aquela que existe na temperatura de sua própria destruição”, porque ela será superada por novas e mais fortes evidências ou por outros paradigmas.

O debate científico, entretanto, é uma raridade no Brasil

E é mais comum que livros que contestam crendices produzam apenas escândalos e ranger de dentes.

Mesmo nas nossas universidades, os espaços para o debate científico costumam ser constrangidos por estratégias de poder, o que talvez seja um problema mais sério nas ciências sociais, sendo comum a exclusão do pensamento divergente e a reprodução de pressupostos ideológicos sustentados frequentemente em nome do “pensamento crítico”.

Há, inclusive, em determinados círculos acadêmicos, uma resistência à noção de “evidência”, um conceito não raro desprezado, como se fosse expressão “do positivismo”.

Nesse cenário, o livro de Pasternak e Orsi é muito bem-vindo e merece ser lido, independentemente das críticas que ele possa merecer.

O que, é claro, não será a postura dos ideólogos e dos vendedores de ilusões que não leram e não gostaram.

Que bobagem… é obra de divulgação científica que oferece, em linguagem acessível ao amplo público, explicações úteis a respeito do método científico e muitas informações valiosas que, de fato, desmontam algumas pretensões de verdade, as quais só sobrevivem no caldo esotérico de alucinações holísticas que elas próprias criaram.

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