OPINIÃO

A menina com brinco no meio da guerra

Por Moisés Mendes / Publicado em 20 de outubro de 2023

A menina com brinco no meio da guerra

Obra de Johannes Vermeer e reprodução de web vídeo

Obra de Johannes Vermeer e reprodução de web vídeo

Tem 18 anos e uma suavidade desafiadora dos horrores da guerra a menina que nos mantém informados sobre o que acontece em Gaza. É Shahed Al-Banna, que fugiu para a região de Rafah com outros 21 brasileiros, para tentar sair dali pelo Egito.

Shahed é um rosto com nome, com identidade e com história para quem olha de fora, no lugar onde as crianças morrem sem que os distanciados saibam quem são. Aos olhos de quem está longe, só as vítimas israelenses do terror do Hamas e seus parentes têm singularidades que os palestinos não têm.

Sabemos quem é o pai do Alok, a prima de Thelet, a mãe e os familiares de Celeste em Israel. Mas não sabemos nada das crianças palestinas. Uma guerra faz prevalecer a versão de quem se impõe pelo poderio militar, econômico e de comunicação e está mais próximo do que chamam de civilização ocidental.

Os palestinos estão do outro lado, ou como disse Joe Biden a Benjamin Netanyahu, no outro time. Os palestinos não têm uma nação, têm um time, segundo o entendimento depreciativo do mais medíocre dos presidentes democratas americanos.

Se não têm pátria, não têm tratamento equivalente ao dado aos israelenses. São figuras tratadas genericamente como um idoso, uma criança, uma senhora, um vizinho. Não conhecemos pais, mães, parentes, amigos de nenhum deles.

As guerras anulam os mais fracos negando-lhes uma identidade. Porque estão no mesmo território do Hamas, não têm relevância para o mundo branco e porque suas demandas por um lugar, uma pátria, uma nação não estão nas prioridades de quem tem poder.

Por isso Shahed Al-Banna quebra essa lógica que nos afasta dos bombardeados. Shahed nasceu em Gaza, morou seis anos no Brasil, onde obteve cidadania, e depois voltou para a sua terra para estudar Letras. Morava com uma tia em Gaza.

Esteve no Brasil pela última vez para se despedir da mãe, doente terminal de câncer. Sabemos que há mais de uma semana ela saiu da casa da tia e se escondeu com uma irmã numa escola. Dali, rumaram para o sul, para tentar chegar ao Egito.

No último dia 16, gravou um vídeo em que disse: “Estou cansada. Eu não quero perder a esperança”. Shahed está exausta. Mas sua leveza desafia a brutalidade da guerra.

Se conseguir sair de Gaza, deixará um território em que a média de idade dos seus 2,2 milhões de habitantes é de 18 anos. Ali, 47% dos moradores têm menos de 17 anos.

Para uma comparação do espaço que ocupam, num confronto com a nossa realidade, a área do município de Alegrete, o maior do Rio Grande do Sul, tem 7.800 quilômetros quadrados. Equivale a 21 vezes à tira de terra de 365 quilômetros de Gaza. Alegrete tem 69 mil habitantes.

Se a guerra fosse interrompida hoje e o mundo fizesse um mutirão pela recuperação do território massacrado, Shahed poderia ficar por lá e virar correspondente internacional do lugar que quase ninguém vê quando não há conflito. Mas ela quer fugir e precisa fugir.

Segundo uma convenção internacional do jornalismo, fontes de notícias não podem ser pagas pelas informações que fornecem. Mas a palestina-brasileira é muito mais do que uma fonte, é uma repórter em Gaza, trabalhando de graça para a Globo.

É uma correspondente de guerra. Shahed ganhou visibilidade porque presta um serviço às empresas de comunicação, ou seria tão esquecida quanto as suas amigas palestinas.

Outros brasileiros-palestinos participam do esforço de comunicação para transmitir informações por seus celulares. Mas foi Shahed quem nos colocou dentro da guerra. Paguem pelo que ela fez, mesmo que seus relatos não tenham preço.

E acolham a menina quando chegar ao Brasil, trazendo de volta seu sonho de se formar em Letras e ajudar a construir a pátria que os palestinos merecem.

Shahed é a nossa menina com brinco do quadro pintado no século 17 pelo holandês Johannes Vermeer. Uma das obras mais famosas e mais admiradas ganhou vida no rosto sereno de Shahed em meio à matança imposta por Netanyahu.

Enquanto a Globo informa nos seus jornais que os israelenses bombardeiam “posições” em Gaza, Shahed, a menina com brinco, a repórter não remunerada da Globo, conta que na verdade eles atacam crianças, mulheres, idosos, escolas, creches, hospitais, prédios residenciais.

O Brasil te espera, Shahed Al-Banna, para que um dia você possa voltar e viver na pátria palestina de Gaza.

 

Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.

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