OPINIÃO

Os que desistem de enfrentar a fúria e pedem pra sair

Por Moisés Mendes / Publicado em 21 de dezembro de 2023
Os que desistem de enfrentar a fúria e pedem pra sair

Foto: Universidade da Pensilvânia/ Divulgação

“A professora Liz Magill desistiu de ser reitora da Universidade da Pensilvânia. Não aguentou o ódio de radicais judeus que a acusaram de cumplicidade com o antissemitismo dentro da universidade”desistem

Foto: Universidade da Pensilvânia/ Divulgação

Ativismos reúnem pessoas com interesses em comum, em áreas diversas, que se agrupam em organizações, entidades, clubes. Numa situação inversa, as confrarias das pessoas que decidem ser passivas reuniriam milhões no mundo hoje.

Imaginemos o clube dos desativados. São os cidadãos que tiram da tomada alguns mecanismos reguladores de condutas, em especial os que administram conflitos. Desistem de discutir, contrapor e enfrentar dissensos incontornáveis, no cotidiano ou em atividades de altos cargos de comando.

A professora Liz Magill desistiu de ser reitora da Universidade da Pensilvânia. Não aguentou o ódio de radicais judeus que a acusaram de cumplicidade com o antissemitismo dentro da universidade. Foi embora.

É um fenômeno mundial, mas com presença marcante nos Estados Unidos, onde a crise da democracia e do respeito às diferenças se exacerbou mais do que no resto do mundo chamado de ocidental.

Deputados republicanos desistem do Congresso, porque eram conservadores e cansaram dos seus colegas que viraram trumpistas e fascistas. Juízes desistem da magistratura. Operários têm esse direito?

Servidores de áreas de contato direto com o público antecipam aposentadorias. Jovens abandonam trabalhos presenciais e só querem interagir com colegas e superiores por meio remoto.

Os desistentes não aguentem mais dedo na cara, gritaria, ameaças. No Brasil, o cansaço se dá mais no magistério do que em qualquer outra área.

Pais mandam nos colégios, distorcendo o princípio do envolvimento da família na vida da escola. Chefes autoritários tornam ambientes de trabalho insuportáveis.

E não mais por discordâncias pontuais e razoáveis. Agora, porque têm diferenças de fundo, nos extremos. A sensação é de que não há mais ninguém ao centro.

É o fim dos consensos. O extremismo de direita se impõe de uma forma impensável até o final do século 20. Impõe-se pela negação da ciência e da vacina. Pelo retorno do anticomunismo. Pelo ódio a negros e às pessoas LGBTQIA+. Pela repulsa a estrangeiros, refugiados e todo tipo de migrante.

Quem estiver lendo esse artigo sabe de alguém que desistiu de dar aulas. Que pegou as trouxas e se mudou de cidade. Que se despediu dos colegas e deixou o plantão do hospital. Por não suportar tanto assédio de quem tem ou imagina ter o poder de se impor como fascista.

Professores não podem falar sobre questões de gênero em muitas escolas brasileiras. Muito menos de discriminações e racismos. Muito menos ainda de gays e trans.

Perseguem professores nas universidades por defenderem o ponto de vista dos palestinos no massacre imposto por Israel em Gaza. Por recomendarem leituras que absolutistas religiosos consideram diabólicas e imorais. Por buscarem conversar e acolher alunos que se interrogam sobre a sexualidade.

Dias desses, numa rede social, li a postagem de uma pessoa que comemorou o aniversário de uma amiga, sem dizer seu nome, festejando que continuam amigas apesar das diferenças ideológicas profundas.

Chegamos ao ponto de afirmar como vitória a ser brindada a preservação de amizades ameaçadas por ideologias certamente extremistas, ou o registro seria desnecessário.

Há cansaços particulares e cansaços coletivos. O melhor exemplo talvez seja o dos chilenos. Foram às ruas em 2019 e 2020, expressaram que 80% desejavam uma nova Constituição e convocaram uma Constituinte.

Um ano depois, rejeitaram a Constituição proposta por ser muito esquerdista. Reconvocaram a Constituinte. E rejeitaram agora a nova proposta de Constituição por ser muito direitista.

Exaustos, os chilenos não querem saber de mais nada e irão ficar com a Constituição de Pinochet, de 1980, toda remendada, mas menos pior do que a proposta no fim do ano e rejeitada por 56% dos eleitores.

O mundo está cansado da impossibilidade de chegar a convergências em questões fundamentais. Cansado de gente tensa.  De discordâncias por qualquer coisa.

Cansaram de emitir e ouvir opinião sobre qualquer assunto, em qualquer lugar, dentro e fora das redes sociais, nos bares, em reuniões, em almoços de domingo.

São posições invariavelmente imutáveis, petrificadas. Todos têm aquela velha opinião formada sobre tudo. Ninguém diz hoje o oposto do que disse antes.

Perdemos o direito à convivência com nossos amigos, vizinhos, parentes e colegas que não chegavam a ser metamorfoses ambulantes, mas em outros tempos revisavam opiniões e ouviam os discordantes. Os que ainda cantam Raul Seixas sabem que em 2024 pode piorar.

Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.

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