OPINIÃO

Luan tem o direito de desistir

Por Moisés Mendes / Publicado em 26 de janeiro de 2024
Luan tem o direito de desistir

Foto: Lucas Uebel/ Grêmio

“Não sabemos se Luan irá de fato desistir ou se pretende jogar num time onde as exigências são menores. O fato é que ele tem, sim, o direito de desistir. Por mais tortuosa que seja sua caminhada até a desistência”

Foto: Lucas Uebel/ Grêmio

O título desse artigo contém uma obviedade, por tratar, como se verá a seguir, de uma escolha pessoal que não afeta direitos alheios individuais e coletivos. Esse texto trata do direito à desistência.

Pois Luan, um dos últimos craques do futebol brasileiro, é considerado por muita gente como um desistente. Por não ter repetido no Corinthians o que fez no Grêmio e por ter sido trazido de volta para a Arena, no ano passado, até ser dispensado pelo clube no início de 2024.

Luan não chegou e disse ao seu técnico: eu desisto, aos 30 anos. Ele pode ter desistido aos poucos, mesmo que desse sinais de que não deseja mais persistir.

Não sabemos se Luan irá de fato desistir ou se pretende jogar num time onde as exigências são menores. O fato é que ele tem, sim, o direito de desistir. Por mais tortuosa que seja sua caminhada até a desistência.

Por que desistir? Porque em algum momento as pessoas desistem, mesmo que, no caso das celebridades do futebol, contrariem interesses financeiros dos outros, demandas de torcidas e expectativas e sonhos coletivos.

Jovens têm desistido e não retornado ao trabalho presencial. Desistem de um curso escolhido pela família, porque toda a família é de médicos ou advogados. Desistem de projetos que os outros consideram importantes.

Os outros acham que Luan não poderia desistir. Que deveria ter sido transparente. Que desistência é uma questão moral. Que ele tem tudo o que muitos jovens desejam. Que tem apenas 30 anos. Que o Grêmio apostou nele.

Mas e daí? Jean Pyerre, outro craque do Grêmio, chegou a anunciar que desistiria, aos 24 anos, e depois recuou. Cantores desistem. Atores se enclausuram. Por não darem conta das demandas alheias na indústria do entretenimento, pela incapacidade de lidar com a exposição pública ou porque que não querem ser famosos.

O direito à desistência é bíblico e tem o suporte de boas reflexões. A mais recente é a do psicanalista inglês Adam Phillips, editor das traduções inglesas da obra de Freud. Phillips é autor de On Giving Up (que poderia ser traduzido como Sobre desistir), que deve ser editado no Brasil em julho pela Ubu.

O psicanalista trata de uma das grandes questões do século 21, associada à degradação de verdades, aspirações profissionais e sonhos construídos na segunda metade do século 20 da ascensão do neoliberalismo e da prosperidade individual.

Chegamos agora ao que poderia ser definido como a era do desapego à persistência que muitas vezes conduz a desastres. Phillips escreve:

“Tendemos a pensar em desistir, na forma mais simples, como falta de coragem, como uma orientação vergonhosa ou imprópria em direção ao que é assustador e desonroso. Isso significa dizer que tendemos a valorizar e até idealizar a ideia de terminar coisas em vez de abandoná-las”.

A desistência sustenta estigmas. Nos casos de Luan e Jean Pyerre (muito criticado quando anunciou que iria parar, em 2022), o mais cruel é o que os enquadra como meninos pobres que não souberam perseverar. Os dois são negros. Se fossem jogadores brancos e de classe média, essa cobrança seria mais branda ou talvez nem existisse.

O jogador branco e de classe média, é o que dizem, desiste porque aquele não é o meio das suas origens. Luan e Jean Pyerre, com seus talentos de exceção, seriam traidores do que ganharam da genética ou de Deus.

A decisão de descontinuar o que não têm mais forças para levar adiante passa a acionar, em muitos casos, frustrações de quem cobra deles o que gostaria de ter sido.

Phillips propõe a abordagem de várias formas e etapas da desistência e seus contextos, incluindo inclusive uma situação em que o desafio de persistir é proposto, por exemplo, por uma doença.

“O herói trágico não desiste, ele não aprende a desistir, apesar dos males causados a ele e aos outros”, disse o psicanalista em entrevista à Folha, admitindo que faz também arriscadas abordagens sobre a desistência de viver, que está em outro patamar e muito além de melancolias romantizadas.

O psicanalista mostra como ver o abandono de um projeto, um trabalho ou uma longa carreira desconfortável sem associá-lo à ideia de fracasso ou fraqueza.

O que importa é que o direito de desistir é tratado no livro sob a perspectiva do direito de continuar vivendo da melhor forma possível, sob o ponto de vista de cada um.

Vamos aguardar a edição brasileira. O direito de desistir percorre, nas abordagens de Phillips, caminhos que levam à afirmação da vida, e não em direção à morte.

Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.

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