OPINIÃO

O “massacre de Gaza”: uma hipótese muito provável

Por José Luís Fiori / Publicado em 23 de janeiro de 2024
Primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu

Foto: Alan Santos/ PR/ Arquivo

“O governo israelense já está refazendo seus cálculos: a continuação desta guerra de extermínio em Gaza pode ajudar a eleição de Donald Trump, que seria a “tábua de salvação” de Netanyahu e de seu governo, e talvez inclusive do seu projeto de destruir a capacidade militar do Irã”

Foto: Alan Santos/ PR/ Arquivo

Depois de três meses de bombardeio continuado da Faixa de Gaza pelas tropas de Israel, os números redondos são assustadores: 24.210 palestinos mortos, 7 mil desparecidos, 60 mil feridos ou mutilados, e cerca de 1,5 milhão de desabrigados, sendo 80% dos mortos e feridos, mulheres e crianças. E mais assustador ainda é a decisão do governo de Benjamin Netanyahu de seguir em frente com esse bombardeio implacável, até a eliminação completa do Hamas. Existem, no entanto, vários pontos nesta narrativa que não são consistentes e não parecem fechar.

O primeiro e mais importante é a desproporção entre a destruição indiscriminada e massiva de Gaza, que está sendo levada a cabo, e o objetivo de acabar com o Hamas. Mais ainda quando as autoridades israelitas sabem que é tecnicamente impossível acabar com o movimento palestino, inclusive porque a selvageria dos bombardeios tem aumentado o apoio da população e a simpatia da juventude de Gaza pela sua organização guerrilheira.

O segundo ponto é que as autoridades israelenses já devem ter percebido que o apoio da comunidade internacional que simpatizou incialmente com sua causa é cada vez menor, e que o isolamento de Israel é cada vez maior, o que  pode vir a ser um problema sério para sua própria sobrevivência.

Neste sentido, a denúncia de Israel, pela África do Sul, à Corte Internacional de Haia, pelo crime de “genocídio do povo palestino”, está repercutindo e sintetizando, neste momento, um sentimento cada vez mais generalizado de toda a Humanidade.

Basta acompanhar as sucessivas votações do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas, sobre o cessar-fogo em Gaza, ou sobre os direitos palestinos, para avaliar o quão isolados se encontram Israel e seu principal avalista, os Estados Unidos.

Chama atenção, por exemplo, a última votação da Assembleia Geral, no dia 19 de dezembro de 2023, de uma moção em defesa do “direito de autodeterminação do povo palestino”, cujo resultado foi aplastante: 172 votos a favor, 10 abstenções e 4 votos contra – exatamente de Israel, Nauru, Micronésia e Estados Unidos. A própria posição dos Estados Unidos, neste sentido, está ficando cada vez mais insustentável do ponto de vista da “ordem mundial baseada em regras” defendida pelos norte-americanos.

Quando se olha para este quadro, a primeira impressão que se tem é de uma vingança irracional, movida pelo ódio e pelo fanatismo religioso. Mas é difícil imaginar que esta seja também a motivação dos Estados Unidos e de alguns países europeus que vêm apoiando a estratégia de extermínio de Gaza.

Por isso mesmo, um número cada vez maior de analistas internacionais vem sustentando a hipótese de que este conflito tenha sido induzido para facilitar a realização de objetivos que vão muito além da própria Faixa de Gaza.

Daí, talvez, a comparação que costuma fazer o primeiro-ministro israelense entre o 8 de outubro de 2023 e o 11 de setembro de 2001. Nas duas ocasiões, algum tipo de conspiração dos homens ou do acaso teria permitido levar à frente uma reação e uma estratégia que já vinham sendo concebidas e preparadas há muito tempo.

No caso dos Estados Unidos, o objetivo seria a expansão do seu poder global através de uma guerra universal ao terrorismo liderada por eles próprios.

E no caso do 8 de outubro, o objetivo israelense seria reconfigurar a geopolítica do Oriente Médio, com a destruição do Hezbollah e o ataque contra as capacidades militares e atômicas do Irã. Um ataque que já vem sendo preparado há muitos anos, mas que até hoje ainda não contou com o apoio dos Estados Unidos.

Se isto não for inteiramente verdadeiro, pelo menos faz mais sentido do que acreditar que a   destruição de Gaza esteja sendo feita por obra apenas de uma vingança, ou como maneira de acabar com o Hamas.

Quando se pensa assim, inclusive, consegue-se entender melhor por que foi  ordenada a saída recente de alguns batalhões israelenses da Faixa de Gaza, que estariam sendo deslocados, de fato, para prováveis novas frentes de luta.

Como também faria mais sentido a sucessão de atentados e assassinatos individuais, nos últimos dias, de alguns líderes importantes do Hamas e do Hezbollah, cometidos de forma concentrada e sucessiva, no Líbano, na Síria, no Iraque e até mesmo dentro do território do Irã.

Atentados cometidos de forma simultânea ao deslocamento das tropas israelenses de Gaza, e com uma série de entrevistas extremamente provocadoras concedidas pelos ministros mais à direita do governo Netanyahu, propondo a expulsão dos palestinos da sua própria terra.

À primeira vista, poderiam parecer atos separados e desconectados, mas a simultaneidade dos fatos e a sucessão das declarações das autoridades judaicas, e dos ataques e lugares escolhidos, sugerem uma forte “afinidade eletiva” com a hipótese de uma “provocação intencional” em busca de uma reposta violenta que poderia mobilizar o apoio dos Estados Unidos para a ampliação da guerra, com sua permissão a um ataque massivo israelense contra o Líbano e o Irã.

De qualquer maneira, se esta hipótese for verdadeira e este tiver sido o objetivo último de Benjamin Netanyahu, parece que algo inesperado surgiu no caminho: a queda da popularidade do presidente norte-americano, Joe Biden, que pretende se reeleger em 2024 e percebe que está perdendo o apoio de setores significativos de seu eleitorado, graças ao seu posicionamento incondicional ao lado de Israel.

Assim mesmo, tudo indica que o governo israelense já está refazendo seus cálculos, ao compreender que a continuação desta guerra de extermínio pode ajudar a eleição de Donald Trump, e a eleição de Donald Trump, poderia ser a “tábua de salvação”   de Netanyahu e de seu governo, e talvez inclusive do seu projeto – há tanto tempo acalentado – de  atacar e destruir a capacidade militar doIra.

Um governo, aliás, que já estava sob a ameaça de destituição antes de 8 de outubro de 2023, quando ocorreu o “incompreensível apagão”’ do sistema de informação de Israel, considerado um dos melhores sistemas de informação do mundo.

De qualquer forma, seja qual for a interpretação correta dos acontecimentos, uma coisa é certa: neste momento, o quadro está em aberto e as possibilidades são múltiplas, mas quase todas as alternativas apontam para a continuação dos bombardeiroe do “genocídio aéreo’ da população palestina da Faixa de Gaza. A menos que os Estados Unidos decidam derrubar o governo de Benjamin Netanyahu.

* Artigo publicado originalmente no Boletim 3 do Observatório Internacional do Século XXI, do Nubea, UFRJ.

José Luís Fiori é professor emérito de economia política internacional da UFRJ; coordenador do GP da UFRJ/CNPq “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; e do Laboratório de “Ética e Poder Global”; Publicou recentemente  Sobre a Guerra, 2018, A Síndrome de Babel, 2020; e, Sobre a Paz, 2021, todos pela Editora Vozes, Petrópolis. 

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