OPINIÃO

A interdição da palavra: sobre aquilo que não pode ser dito

Por José Luís Ferraro / Publicado em 21 de fevereiro de 2024
São Paulo (SP), 13/01/2024 - Manifestação de apoio ao povo palestino e para denunciar os crimes do Estado judeu, organizada pela Campanha de Solidariedade à Palestina, Coligação Pare a Guerra e os Amigos de Al Aqsa, na Avenida Paulista.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Manifestação de apoio ao povo palestino e denúncia dos crimes do Estado judeu, organizada pela Campanha de Solidariedade à Palestina, Coligação Pare a Guerra e os Amigos de Al Aqsa, na Avenida Paulista, em São Paulo em janeiro deste ano.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Existem palavras que, principalmente nos últimos tempos, descobrimos que não podem ser ditas. Elas parecem ter dono por terem sido capturadas historicamente por discursos específicos. Sua utilização – por mais urgente, necessária ou dotada de sentido – parece infringir um direito inalienável de propriedade.

No entanto, a apropriação das palavras produz um desserviço a qualquer debate, pois resulta em sua interdição sumária. Não há possibilidade de diálogo quando certos grupos resolvem reivindicar palavras, usando de seus poderes para construir uma rede de desinformação.

Quando se analisa um processo histórico, por exemplo, comparar acontecimentos é sempre complicado. Isso porque a ideia de acontecimento se insere em uma ordem que é do “irrepetível”: nenhum acontecimento é igual ao outro – suas condições de possibilidade e os fatos que concorreram à sua plausibilidade diferem no espaço, no tempo e em relação às suas motivações (justas ou injustas). No entanto, não há motivo que justifique que as palavras – e a própria linguagem – se convertam objeto de apropriação.

Se um fato histórico, analisado do ponto de vista “acontecimental”, não pode ser elemento de comparação, isso não impede que os meios e as tecnologias outrora empenhados para sua consumação, não possam vir a ser (re)utilizados, revividos, com outras intenções.

Um acontecimento é sempre “um” acontecimento, envolto em toda sua singularidade, mas os acontecimentos podem servir (ou se produzem) como metáfora para outros: principalmente quando se fala de sua utilização para a compreensão de uma realidade atual.

Palavra interditada, sintoma potencializado

A psicanálise, por sua vez, já nos ensinou que sempre que a palavra é interditada, o sintoma se potencializa; e é, exatamente, o desconforto do sintoma que queremos evitar.

Nesse caso, além de uma evitação consciente, se produz também uma negação consciente.

Isso sem contar em uma série de desmentidos que visam sustentar a apropriação do significante, que agora serve para identificar um determinado grupo e não pode mais servir a outro. E tudo isso sob a pena da deslegitimação por meio da produção de outra identidade – desqualificada, pejorativa em relação a quem insiste na socialização, no compartilhamento das palavras.

Nessa semana, um determinado Chefe de Estado, ao ousar enfrentar a interdição de um significante específico, mostrou que a diplomacia não é feita tão somente de neutralidade. Após sua manifestação parece ter havido uma espécie de catarse, não apenas linguística, mas uma liberação da palavra e pela palavra; de um sentimento de luto comum.

Depois de sua declaração – coincidência ou não – todos os países da União Europeia, com exceção da Hungria, pediram o cessar-fogo em um território ocupado no Oriente Médio.

Se você leu este texto e conseguiu compreendê-lo, pode perceber que nem só da negatividade vive aquilo que não pode ser dito.

José Luís Ferraro é doutor em Educação, bolsista produtividade do CNPq e professor universitário.

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