OPINIÃO

Eles enfrentaram a censura e a ditadura

Por Moisés Mendes / Publicado em 27 de março de 2024

Eles enfrentaram a censura e a ditadura

Foto: Museu De Saúde Pública Emílio Ribas/Inst. Butantan

Foto: Museu De Saúde Pública Emílio Ribas/Inst. Butantan

No inverno de 1974, os jornais não podiam publicar nada sobre a epidemia de meningite. Fiquei sabendo da proibição imposta pela ditadura quando subi ao mezanino da redação de A Plateia, em Livramento, e o telefone tocou.

Era agosto, perto do meio-dia. O telefone tocava na mesa do editor-chefe, que na época chamavam de secretário de redação, Nelson Basile.

Eu era repórter do jornal, tinha 21 anos. Me lembro de tudo o que aconteceu na sequência, em detalhes. O homem do outro lado da linha anunciou que falava da Polícia Federal e perguntou quem chefiava o jornal.

Eu dei o nome, disse que estava sozinho ali e ele pediu que eu transmitisse a seguinte determinação a Basile: o jornal não poderia publicar nada, uma linha sequer, sobre meningite.

Perguntei ao homem qual era seu nome, apenas cumprindo protocolo de querer saber com quem falava, e ele afirmou: diga apenas ao seu chefe que é da Polícia Federal. Perguntou meu nome e desligou.

A meningite meningocócica, causada por bactéria, matava os pobres desde o início dos anos 70 em São Paulo e havia se alastrado pelo país. Estava começando a matar a classe média.

A ditadura, sem vacina para todos, temia que as informações sobre as mortes e as deficiências do governo espalhassem o pavor num ano eleitoral. Geisel era o presidente. O golpe completava 10 anos.

Quando Basile chegou à redação, na Rivadávia Correa, a uma quadra da linha de fronteira com Rivera, eu transmiti o recado. Ressaltei o tom assertivo da voz do agente da delegacia da PF na cidade.

Basile foi à sala do diretor-geral e dono do jornal, João Afonso Grisolia, que ficava ao lado da redação. Os dois retornaram e eu fui informado da decisão que haviam tomado: o jornal iria publicar não uma notícia sobre a meningite, mas um encarte de quatro páginas.

Eu ainda alertei, meio ingênuo, que o homem havia sido categórico. Que havia ficado com o meu nome e que eu não sabia nada dele. Eles disseram que tudo ficaria bem.

No início da noite daquele dia do telefonema, a ditadura fechou a fronteira com o Uruguai, para evitar o trânsito entre os dois países. E a Plateia saiu na capa com uma foto da avenida da fronteira e uma tarja com letras maiúsculas (ou em caixa alta, como se diz nos jornais) sobre a imagem: FECHADA.

Uma imagem feita pelo fotógrafo João David, numa edição histórica. Assim agia a imprensa que não se dobrava à ditadura, mesmo que seus donos e seus quadros não fossem necessariamente de esquerda.

E assim a ditadura avançava em todas as frentes. Perseguia, prendia, cassava, torturava, matava e sumia com os corpos dos inimigos do regime. E censurava jornais para que não contassem a verdade.

Me lembro da fila no Parque Internacional para a vacinação, e eu ali, por horas, esperando a minha vez. Me recordo que pouco ou nada se sabia sobre os números da pandemia.

Fiquei sabendo muito tempo depois, pelo historiador Lucas Pedretti, que em julho de 1974 o então diretor-geral da Polícia Federal, Moacyr Coelho, havia determinado que a corporação avisasse os jornais: ninguém podia divulgar “dados numéricos e gráficos sobre meningite”.

Sei hoje que ainda são consideradas imprecisas as estatísticas daquela época, quando os ditadores fizeram o que Bolsonaro faria de novo na pandemia da Covid ao tentar esconder a realidade.

Teriam sido infectadas 180 mil pessoas e morrido pelo menos 2,5 mil. Mas, segundo Pedretti, o Globo informou, em dezembro de 1974, que aquele havia sido o número de mortos só em São Paulo. Outros 111 morreram no Rio Grande do Sul e 304 no Rio.

Naquele ano, a ditadura foi acossada pela crise do petróleo, pela volta da inflação, por divisões internas e pela vitória avassaladora do MDB. O partido de oposição elegeu 16 dos 22 senadores e conquistou 161 das 364 cadeiras da Câmara.

Surgiram com força naquele ano, como senadores, Marcos Freire (Pernambuco), Roberto Saturnino Braga (Rio), Paulo Brossard (Rio Grande do Sul) e Itamar Franco (Minas). Eram fortalecidos os líderes pela democracia, como Ulysses Guimarães e Franco Montoro, e os dissidentes da ditadura, como Magalhães Pinto.

Três anos depois, em 1977, Geisel fechou o Congresso por 14 dias, determinou que não haveria eleição direta para governador em 1978 e criou a figura do senador biônico, ‘eleito’ por indicação dos generais. A ditadura reagia.

Nelson Basile já faleceu. No final daquele 1974, ele foi preso em casa por distribuir panfletos pela cidade debochando do delegado da Polícia Federal que estava sendo transferido para outro município. Ficou dois dias numa cela da PF. João Afonso Grisolia mora em Porto Alegre.

(Este texto é uma homenagem a todos os jornalistas interioranos que, sem fama, sem o suporte dos grandes organismos de defesa da democracia e sem medo, enfrentaram a ditadura.)

Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.

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