OPINIÃO

Está tudo bem

Publicado em 6 de abril de 1998

A proverbial marquesa já estava acordada quando o mordomo veio trazer o seu café e abrir as suas cortinas. Tinha ouvido tiros no meio da noite.

– Tiros, madame?
– Tiros.
– Busca-pés, madame.
– Não, tiros.
– Impossível, madame. Está tudo bem. Está tudo muito bem. A moeda estabilizada. As bolsas em alta. As pessoas eufóricas. Confie em mim, madame. Certamente, busca-pés.
– Ouvi protestos no meio da noite.
– Protestos, madame?
– Protestos.
– Folguedos, madame.
– Não, protestos.
– Impossível, madame. Não há contra o quê protestar. Reina a felicidade. Impera o contentamento. Governa a alegria. Confie em mim, madame. Certamente folguedos.
– Ouvi gritos no meio da noite.
– Gritos, madame?
– Gritos.
– Impossível, madame. Ninguém está gritando no meio da noite. Todos estão trabalhando, produzindo, comendo e dormindo em paz. Confie em mim, madame. Certamente gatos.
– Vi manifestações e contramanifestações, pessoas portando cartazes e faixas, corre-corre e…
– Viu, madame?
– Vi.
– Sonhou, madame.
Vi. Fui até a janela e vi.
– A senhora levantou da sua cama no meio da noite, calçou suas pantufas, vestiu seu peignoir, caminhou até a janela, abriu as cortinas e olhou a rua para ver, a senhora mesmo, o que estava acontecendo, madame?
– Sim.
– A senhora, também, estava procurando, não é madame?

Virtudes adquiridas

Em 1948 as teorias do biologista russo Lisenko sobre a evolução e genética foram oficializadas pelo governo da União Soviética. Quem discordasse delas arriscava até o expurgo. Lisenko dizia que características adquiridas eram transmitidas por geração. Isto é: em vez da evolução por tentativa e erro da teoria de Darwin, do aperfeiçoamento da espécie através de mutações acidentais que davam certo, Lisenko sugeria a possibilidade do aperfeiçoamento consciente. Contra a idéia resignada de que biologia é destino, Lisenko insistia que a experiência não biológica de uma geração podia ser transmitida biologicamente a outra. Stálin endossou as teses de Lisenko porque elas davam um aval científico ao seu banho de sangue. O paraíso comunal que viria no fim da História justificava todos os meios para alcançá-lo. Mal comparando, Lisenko foi para Stalin o que Rasputin foi para o último tzar. No auge da sua crise, a dinastia imperial se entregava ao misticismo e procurava nas estrelas e num charlatão sua justificativa. Stálin descobriu em Lisenko a sua remissão. No fim da purgação stalinista, a natureza humana, ou pelo menos a natureza humana que sobrasse na União Soviética, estaria pronta para o comunismo puro. Lisenko absolvia Stálin.

Mude-se o nome dos teóricos, dos charlatões e da ideologia e têm-se a história repetida. Agora o tirano é o mercado e ele também tem teses para absolver seus crimes. Não faltam místicos e economistas para nos dizer que também há um paraíso no fim desta história, para quem sobrevivê-la. Há até economistas místicos que podem identificar o martírio da carne com a purgação liberal e ver nas duas coisas a vontade de Deus. Sua pregação também pressupõe uma alteração na natureza humana, como a que Lisenko prometia a Stálin. O capitalismo incontestado não está condenado pelos seus antecedentes, as virtudes adquiridas que ele mesmo atribui são reproduzíveis até na mesma geração. No fim do expurgo seremos poucos mas seremos todos capitalistas puros, a salvo da culpa e da História.

Sobrevida

O computador, ao contrário do que se pensava, não salvará as florestas. Dizem que com o computador aumentou o uso do papel em todo o mundo, e não apenas porque a cada novidade eletrônica lançada no mercado corresponde um manual de instrução, sem falar numa embalagem de papelão. O computador estimula as pessoas a imprimirem coisas. Como hoje qualquer um pode ser editor, paginador e ilustrador sem largar o mouse, a tentação de passar sua obra para o papel é quase irresistível. E nada dá uma impressão de permanência como a impressão, ainda mais uma tela ondulante que pode desaparecer com o mero toque numa tecla errada. Mesmo forrando a proverbial gaiola do papagaio um papel impresso tem mais nobreza e perenidade que qualquer cristal líquido.

Um livro está operacional no momento que você o abre. Um disquete não substitui um livro. Um disquete dentro de um drive, dentro de um módulo acoplado a um monitor, desde que seja compatível, substitui um livro. Ninguém jamais lhe perguntará que disquetes você levaria para uma ilha deserta. Para o disquete valer um livro, você teria que viajar com um computador e a ilha teria que ter uma usina elétrica ou um revendedor de pilhas, o que a descredenciaria como deserta e invalidaria a enquete.

Mas desconfio que o que salvará o livro será o supérfluo, o que não tem nada a ver com conteúdo ou conveniência. Até que lancem disquetes com cheiro sintetizado, nada substituirá o cheiro de papel e tinta nas suas duas categoria inigualáveis, livro novo e livro velho.

E nenhuma coleção de disquetes ornamentará uma sala com o calor e a dignidade de uma estante de livros. A tudo que falta ao admirável mundo da informática, da cibernética, do virtual e do instantâneo acrescente-se isso: falta lombada. No fim o livro deverá sua sobrevida à decoração de interiores.

Seja como for, as florestas estão condenadas.

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