OPINIÃO

Defesa

Por Luis Fernando Verissimo / Publicado em 5 de dezembro de 1998

Atenção. Vou elogiar o governo. Deve ser o espírito de Natal. Com a criação do Ministério da Defesa a tão anunciada modernização do estado brasileiro pelo Éfe Agá finalmente saiu da retórica para entrar na história.

É verdade que veio junto com outra novidade histórica, o primeiro ministério da República declaradamente montado para a barganha. A primeira vez em que a intenção fisiologista de um ministério não apenas é oficializada mas é enfatizada num discurso presidencial, e em tom de ameaça. Não há precedente para o anúncio do ministério dá-ou-desce feito pelo Éfe Agá.

Em vez de escolher os mais capazes para cada pasta, disse o presidente à nação, tinha escolhido reféns. Como um sequestrador ao contrário, declarou que só ficará com eles se seus partidos derem o que ele quer. Mas como estas coisas antes eram feitas mas não ditas, talvez isto também represente um progresso, como o Ministério da Defesa. A chantagem política saiu do implícito e entrou na retórica.

Mas eu ia elogiar. Mesmo que ele ainda não seja o que se pretende, a criação do Ministério da Defesa é um passo importante para um país mais adulto. No mínimo, vai forçar uma repensada do papel das Forças Armadas em nossas vidas.

Como marco do “fim de uma era”, simbólico ou não, vai permitir que se discuta o que, afinal essa entidade meio abstrata, meio real demais, “os militares”, significaram, fizeram e quiseram fazer e não puderam na nossa história.

Um dia se poderá ver de outra perspectiva, por exemplo, o nacionalismo exacerbado que poderia ter nos levado por outro caminho, para outro modelo, se não fosse sempre tão identificado com a direita militar e os seus simplismos. Seja como for, o fato de não haver mais ministros de quépi é um avanço para ser festejado.

Olha aí, Éfe Agá, parabéns. Mas não se acostume.

Má memória

No outro dia escrevi que o general Lanusse tomou um porre e mandou invadir as Malvinas. De porre deveria estar eu. O Lanuse era um dos melhorzinhos entre os generais argentinos e até tinha fama de intelectual. Parece que o viram com um livro, uma vez. E não teve nada a ver com a história. Quem mandou invadir as Malvinas e na manhã seguinte não se lembrava foi o Galtieri, como várias pessoas se apressaram a me dizer.

Mas não posso me queixar da PM, a Patrulha da Mancada. Já fiz coisa pior e fui poupado. Uma vez, levado pela possibilidade de um trocadilho com os nomes Brecht e Odebrecht, bolei uma paródia de Esperando Godot que envolvia a empreiteira, muito citada no noticiário de algum escândalo da época.

A ideia era boa mas só tarde demais me dei conta: Esperando Godot é do Becket, não do Brecht. Pelo menos acertei quatro letras, pensei resignado, esperando que a turma do “Arrá!” se manifestasse. Ninguém se manifestou.

Trocar Becket por Brecht foi pura distração. Quase sempre é a memória que nos engana. Você pode atribuir o erro a esta agitação em que vivemos, às precariedades da vida de um jornalista – e, em último caso, calhordamente, à revisão, que devia nos salvar de nós mesmos – mas a culpa é da nossa memória, o pior material de referência que existe. Já tive certezas absolutas, nas quais apostaria a mãe, desmentidas pelos fatos registrados. Eu simplesmente me lembrava errado. Com o passar dos anos acontece este paradoxo cruel: a gente tem cada vez mais memórias e elas são cada vez menos confiáveis.

Pior do que memória que falha é lembrança que você sabe que é real e não pode provar. Ninguém acredita quando conto que um dia, em Nova Iorque, vi um filme com cheiro.

Era na época em que Hollywood inventava de tudo – três dimensões etc – para combater a televisão e uma das coisas testadas foi o Smellorama, ou coisa parecida. Alguém comia uma laranja na tela você sentia o cheiro da laranja na plateia. O cheiro saía de ductos espalhados pelo cinema.

Mas me dizem que nunca houve isso, que não há registro algum disso e que eu estou delirando. Me convenceram. Se alguém aí tem alguma lembrança de cinema com cheiro ou de ter lido ou ouvido falar a respeito, deve estar sonhando!

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