OPINIÃO

Tempo de sovaco

Veríssimo / Publicado em 28 de maio de 1999

Um dos parâmetros para julgar uma moradia em Paris é o que se poderia chamar de tempo de sovaco do pão: que distância você precisa caminhar com a baguete em baixo do braço na volta da padaria. Você não verá nada parecido com temp de sovaque, ou como quer que se chame em francês, nos anúncios de apartamentos para alugar ou vender na cidade, mas a proximidade ou não de uma boulangerie, ou do comércio em geral, é um dado a ser considerado na escolha do local. Num hotel o problema não existe. O pão servido veio num sovaco anônimo de procedência desconhecida. Mas se a idéia é viver como um parisiense, nem que seja só por curtos períodos, como é o nosso caso, você precisa se imaginar cumprindo todos os rituais nativos, entre os quais desfilar com as baguetes de um metro de cada dia debaixo do braço é um dos mais sagrados. Desfilar por quanto tempo, eis a questão.

A não ser por algumas zonas deflagradas onde nem o charme do pitoresco compensa o desconforto ou o risco, não existem lugares “ruins” para se morar em Paris. Ainda mais para quem não está preocupado em se situar na movediça geografia social da cidade, dividida entre os endereços de maior ou menor prestige do momento. A escolha acaba sendo determinada pelo que há no mercado, claro, e por fatores práticos. O preço, já que ninguém é socorrido do Banco Central, e coisas como o acesso a ônibus e metrô, a existência ou não de elevador, a cara da vizinhança e o tempo presumido de sovaco. São raros os apartamentos que ficam a uma distância desanimadora do pão diário ou de algum aglomerado comercial e, no mínimo, de uma bolacha. Uma das instituições parisienses é o arab du coin, a venda do árabe providencial da esquina. E você sempre pode se convencer que, quanto mais longe fica a padaria, mais razão você tem para caminhar em Paris. Sempre um bom programa, com ou sem baguetes.

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Temos tido trailers da primavera parisiense nos intervalos da chuva. Amostras do que está por vir, assim que o inverno encontrar o seu cachecol, botar na mala e ir embora. O inverno está custando a ir embora.

A França é uma espécie de Iugoslávia meteorológica onde inimigos históricos, o clima do Mar do Norte e o clima do Mediterrâneo, lutam por território e poder, e é na primavera que as batalhas se intensificam. No domingo o Mediterrâneo parecia ter consolidado suas posições em torno da capital, acabado com todos os focos de resistência e tomado Paris, mas à noite o Mar do Norte contra-atacou com tudo. Logo o dia estava feio, mas não choveu e a temperatura aumentou. Tudo indica que houve uma trégua. A população sai cautelosamente à rua, acenando com roupas leves mas com o guarda-chuva engatilhado. Não é verdade que Paris é cinzenta no inverno mas na primavera tudo muda e ela fica cinza-claro. Esta é uma das cidades mais coloridas e florescentes do mundo. É só lhe darem uma chance de vez em quando.

Há um imenso relógio eletrônico na Torre Eiffel marcando os dias que faltam para a chegada do ano 2000 e toda vez que eu vejo o relógio penso no marechal Tito, e já me explico. Nem preciso ver o relógio. Aponta da Torre Eiffel já me faz pensar no marechal Tito. O Guy de Maupassant gostava de almoçar na Torre Eiffel porque dizia que era o único lugar em Paris em que você podia olhar todo o horizonte sem o perigo de ver a Torre Eiffel. Ver a Torre Eiffel é uma fatalidade para quem está em Paris. O que quer dizer que tenho pensado muito no marechal Tito. Porque quando 2000 chegar e você e outras pessoas normais estiverem pensando em comemorações ou no apocalipse, os jornalistas estarão pensando em retrospectivas. E é difícil imaginar que o escolhido como estadista do século e talvez do milênio não seja Tito. Quanto menos dias faltam para fazer as retrospectivas e quanto mais piora a situação nos Bálcãs, mais cresce a cotação do marechal, que não só desafiou Stalin e o poder central soviético e fez seu socialismo independente na Iugoslávia como conseguiu manter todos aqueles fanáticos unidos e convencidos de que eram uma nação, durante anos. Ou como líder ou como mágico, foi o homem do século.

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