OPINIÃO

Entra e sai

Veríssimo / Publicado em 23 de novembro de 1999

No outro dia nasceu o hexabilionésimo, se é assim que se diz, habitante da Terra. A ONU decidiu que ele (é um menino!) nasceu em Sarajevo, e o secretário-geral Kofi Annan estava lá para dar as boas vindas em nosso nome e dizer que, qualquer coisa, estamos aí. Todos os anos nascem uns 80 milhões de pessoas no mundo, a maioria na Ásia. Asituação na China é tão potencialmente explosiva que lá já existe uma coisa inédita na História do mundo – uma sociedade sem tios. Em pouco tempo não haverá mais irmão na China e “tio” só em sentido figurado. Como os filhos únicos costumam ser mimados e difíceis, o resultado é que no futuro os chineses serão menos do que temíamos, mas mais chatos. Toda a população do mundo está crescendo menos do que o previsto, o que não deve nos consolar. O drama demográfico fica maior a cada dia, principalmente num mundo em que a distribuição de recursos, energia e comida fica mais injusta a cada minuto. Mas podia ser pior e, assim como pessoas nascem outras cumprem seu papel neste infindável vaudeville e saem, convenientemente, de cena. Era natural que ao nascimento simbólico em Sarajevo correspondesse uma morte simbolicamente simultânea em outro lugar – mas precisava ser o Milt Jackson? Você sabe que também está chegando a hora de sair do palco e dar seu lugar a um chinês quando descobre que quase todos os músicos que gosta de ouvir já se foram. Me dei conta que ultimamente só ouço mortos. Aexceções eram raras, e uma delas era o Milt Jackson, o homem que conseguiu o milagre de transformar o vibrafone, metálico, percussivo e dependente em eletricidade, num instrumento intimista. No Quarteto de Jazz Moderno ele era a alma arrebatada em contraste com o cerebralismo recatado do pianista John Lewis, e o contraponto entre os dois foi uma das glórias da música deste século. Ninguém tocava uma balada com o bom gosto de Milt Jackson, mas também ninguém ia buscar um blues lá no fundo como ele. Mas estava na hora de desocupar o lugar e ele foi para a banda dos mortos, que fica cada vez melhor. Enquanto você leu isto, sabe quantas pessoas nasceram no mundo? Não, não adianta eu escrever textos mais curtos. Não vai mudar nada.

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Já somos 6 bilhões de pessoas no planeta. Se fosse um planeta bem administrado isto não assustaria, mas além da fertilidade de coelhos temos o caráter de chacais, que, como se sabe, são animais sem qualquer espírito de solidariedade humana. As megacidades, que um dia foram um símbolo da felicidade bem distribuída que a ciência e a técnica nos trariam -um helicóptero em cada garagem e caloria sintética para todos, segundo as projeções futuristas dos anos 20 – se transformaram em representações da injustiça sem remédio, cidadelas de privilégio cercadas de miséria, a repetição do mundo feudal só que com monóxido de carbono. Nosso futuro é o aperto urbano e associedades se dividem entre as que se preparam – conscientemente ou não – para um mundo desigual e sem espaço e as que confiam que as cidadelas resistirão.

Os jornais brasileiros ficaram todos mais finos, recentemente, para economizar papel mas também porque com o tempo diminuirá o espaço para a expansão dos nossos cotovelos. Chegaremos ao tablóide radical, duas ou três colunas magras em que tudo terá que ser dito com concisão desesperada. Adeus confortáveis advérbios de modo, adeus frivolidades e divagações superficiais -como estas. A tendência de tudo feito pelo homem é para a diminuição progressiva – dos telefones e computadores portáteis aos assentos na classe econômica – embora o volume do próprio homem, pelo menos do homem que se alimenta bem, esteja aumentando. Ou talvez por isto.

No Japão, onde muita gente convive há anos com pouco lugar, o espaço é sagrado. Surpreende a extensão dos jardins do palácio imperial no centro de Tóquio, uma cidade onde nem milionário costuma ter mais de dois quartos, o que dirá um quintal. É que o espaço é a suprema deferência japonesa. O imperador sacralizado é ele e sua enorme circunstância.

Já nos Estados Unidos, reverencia-se o desperdício de espaço. Para entender os americanos você precisa entender a sua classificação de camas de acordo com o tamanho: Queen Size, tamanho rainha, King Size, para reis e, era inevitável, Emperor Size, do tamanho de jardins imperiais. É o espaço como a suprema ostentação, já que – a não ser para orgias e piqueniques – nada mais supérfluo do que espaço de sobra na cama, exatamente o lugar onde não se vai a lugar algum. E os americanos não se deram conta de que, quando chegar o dia em que haverá chineses embaixo de todas as camas do mundo, quanto maior a cama, mais chineses.

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