OPINIÃO

Fome de palavras

Publicado em 21 de março de 2007

Tudo começa na tenra idade. Desmamadas, as crianças recebem mamadeiras, papas, até que chega a primeira sopa de letrinhas. Aí, com essa simbólica refeição, fica provado por A+B, ou por V+F (ou qualquer combinação aleatória na colherinha), que o apetite humano tem mais a ver com as palavras do que se imagina. Sim, outra tese fajuta pro leitor engolir.

Pra começar, por que as vitaminas têm abreviaturas como A, B, C, D, E, K? A própria vitamina B abrange tantas variantes – B1, B2, B6, B12 – que compõem todo um complexo! Ao ingeri-las, se poderia ficar mais saudável a partir de exercícios vitais, tipo “Eva, Ivo e vovô viram a vitamina”.

A partir da cartilha (se é que elas ainda circulam por onde eu nunca mais circulei), surge a voracidade que confunde os sentidos: será a gastura da merenda ou já é a fome de saber que se insinua durante o recreio? Para mim, até iniciais gravadas a gilete nas classes serviam como pão do espírito. Muito me nutri de letras esparsas, feito farelos de informação. Inúteis, pero saborosos.

Leitura e comida, indissociável prazer oral. Desde cedo me fartava de revistas e jornais velhos, que juntava para revender. Rendiam guloseimas, que eram consumidas enquanto mastigava textos deliciosos. Quando nada havia para meu comércio, fazia lanches por cima do ombro de quem lia algo. Ruminava por horas uma frase rebuscada. Poemas, mesmo amargos, pareciam sobremesas. Uma vez, numa bacia amassada num entulho, achei um exemplar rasgado de Platero e Eu. Foi como um banquete em bandeja de prata. Engordei vários quilos de lirismo.

Nada é bastante para os famintos de palavras. Uma enciclopédia assada, picadinho de dicionário, ensopado do tesouro da juventude, salada de livros condensados: quanto mais entrava, menos satisfeito ficava. Assim é o comensal da celulose. Cultura inútil ou conhecimento embasado, tanto faz – é uma gula sem-fim, como uma tênia na cabeça.

Creio, por experiência própria, que as pessoas necessitadas dependem tanto de proteínas quanto de uma dieta mínima de palavras impressas. Junto com os sopões nutritivos, seria bom um livrinho, até um gibi pode complementar o balanceamento do prato. Num mundo ideal, as livrarias forneceriam quentinhas de pocket-books.

Às vezes, à mesa, me detenho num trecho de cardápio. Mais pela redação do que pelo menu. Sempre se pode encontrar uma descrição que seja melhor que o prato, não pode?

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