OPINIÃO

Ensaio sobre a visão

Publicado em 7 de setembro de 2010

Colunista: Fraga

Ilustração: Rafael Sica

Ilustração: Rafael Sica

Tudo começou com algumas letrinhas e terminou em manchetes garrafais.

O primeiro sinal foi o esvaziamento das ruas, num fim de semana. As pessoas se enfurnaram nas casas e o sábado ensolarado veio e se foi em vão. Elas estavam lendo, não paravam de ler.

O estranho foi que as pessoas não estranharam que precisavam ler. O impulso surgiu e os livros começaram a descer das prateleiras, famílias inteiras lendo, espalhada pelos cômodos. Largavam um exemplar, pegavam outro, revezando títulos entre si. Tudo em silêncio, olhos presos às páginas.

Nas casas e apartamentos, a mesma ansiedade por textos: quem tinha estantes, se pendurava nelas e despencavam os volumes; quem não tinha, devorava embalagens de tudo que havia na casa. Nem velhas listas telefônicas eram desinteressantes, bulas eram disputadas até por quem não tomava remédio.

Nos corredores dos edifícios se multiplicaram os furtos de jornais de assinantes.

No domingo, os moradores de cada andar saíram para os outros andares e invadiram mutuamente os apartamentos alheios. E se atracaram a ler, esgazeados em novo afã.

Quando se esgotaram os estoques de leitura caseira, grupos começaram a ganhar as ruas, zumbis famintos por parágrafos. Multidões de leitores catando do lixo coisas que ninguém nunca lê: folhetos panfletos, filipetas, flyers.

Nos shoppings, quietude aparente por fora. Em lojas, supermercados e farmácias, a hipnótica faina: clientes e funcionários, ocupados com displays, cartazes, avisos. As pessoas se detinham aqui e ali e seguiam em busca de mais impressos, um frenesi que esbugalhava todo mundo, uma insanidade passiva no ar.

Até que a contida balbúrdia virou um tsunami de eventos por toda a parte: as bancas de jornais foram tomadas de assalto e, sem violência mas com voracidade, os estoque eram esvaziados e as pessoas saíam sobraçando pilhas de revistas. E o jornaleiro indiferente, fixo na publicação em mãos.

Daí se espalhou o surto por toda parte e as livrarias abertas foram invadidas e as livrarias fechadas foram arrombadas, assim como todos os sebos da cidade. Os alarmes soavam e nada disso afetava a leitura. Como num ritual combinado, milhares de leitores afluíram para as bibliotecas, onde arriaram os acervos. Por dias, os bandos se acalmaram em meio à cultura.

De repente, a vontade de ler passou. Todos voltaram às suas casas, sem comentar nada. Os garis começaram a varrer as ruas, indiferentes às páginas esvoaçantes.

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