OPINIÃO

Está tudo dominado

Por Moisés Mendes / Publicado em 8 de fevereiro de 2017

Foto: Mídia Ninja

Foto: Mídia Ninja

Se o governo do Jaburu anunciasse hoje que Luana Piovani seria a nova secretária especial de Direitos Humanos, haveria reação forte no Facebook, passeatas em todas as redes sociais, discursos de 140 toques no Twitter. Mas quase nada além disso.

O governo diria que Luana Piovani tem reconhecido tirocínio humanístico, como especialista em abordagens sobre a dor provocada pela morte de um ente querido, e pronto.

O debate poderia durar dois ou três dias, mas em pouco tempo Luana estaria dando entrevistas no Jornal Nacional e comandando o grande plano de humanização das cadeias em rebelião.

O poder no Brasil, como já disse alguém, virou campo de jogo de várzea. Qualquer um, até sem saber direito por que, pode virar alta autoridade de alguma coisa, se seus interesses convergirem com os interesses dos golpistas e a eles estiverem submetidos. Assim como qualquer debate pode envolver os mais estranhos debatedores.

A citada Luana Piovani pode atrair para uma discussão nomes respeitados do pensamento brasileiro. Não preciso citá-los. Ao suspeitar da sinceridade da emoção de Lula no velório de dona Marisa Letícia, a atriz protagonizou duelos até então inimagináveis.

A polêmica é, por natureza, um confronto de vaidades. Quem esgrime com ideias tenta subjugar ou fragilizar um adversário à altura das suas ambições intelectuais, para depois ser aplaudido pela plateia, mesmo sendo derrotado.

Hoje, um pós-doutor em História da Ufrgs ou da USP desce à mais imunda fossa das redes sociais para um embate com Luana Piovani. Não uma conversa, mas um debate, a partir de argumentos rasteiros. E Luana pode pôr o professor a correr.

O país que teve sua democracia destroçada por um golpe e em que quase todos se encolheram, inclusive os professores, é pautado pela avaliação de sentimentos de Luana Piovani (tanto que eu escrevo sobre isso agora).

Neste Brasil, um juiz de primeira instância pode emitir uma nota, “com humildade”, mas em tom de oráculo, sobre a reputação de um ministro do Supremo. Pode, é seu direito. Mas um bom pedaço do país aplaude a nota como se esse fosse o documento mais esperado sobre a indicação de Edson Fachin como novo relator da Lava-Jato.

O que muda na vida do STF e na nossa vida saber que o juiz Sergio Moro admira Edson Fachin? É como se o centroavante Orobó, do Clube Atlético Ferroviário de Curitiba, assegurasse que Neymar é craque e isso virasse manchete mundial. Só porque Orobó é o centroavante do momento, assim como o juiz Moro é o juiz da hora.

Neste Brasil, a sensação é de que qualquer um, num descuido, pode virar até ministro do Supremo. Como o “constitucionalista” que, pelas próprias teses acadêmicas que defendeu e por um mínimo de compostura da Justiça e da política, não poderia ser ministro do STF (um membro da mais alta Corte não deve sair de indicação política de quem ocupa cargo de confiança, escreveu ele mesmo em dissertação na USP).

Mas ele pode, porque no pós-golpe tudo é possível. Mesmo que tenha reprimido com violência os estudantes, como secretário de Segurança de São Paulo. Que tenha sugerido, com perguntas enviesadas, como professor de Direito (dizem que medíocre), que a tortura em algumas circunstâncias é admissível. Que tenha relações suspeitas com empresas investigadas por corrupção.

Alexandre de Moraes, os amigos do Jaburu, os cúmplices do Jaburu, todos perceberam que o Brasil perdeu qualquer capacidade de reação. Que reagem no Facebook, mas na vida real o país prolonga a hipnose para adiar o que o espera quando abrir os olhos e tentar voltar a pensar.

A Globo, o PSDB, o PFL, Zé Agripino, Serra, Jucá, Geddel, Padilha, Caiado, Mendoncinha, o pato da Fiesp sabem que está tudo dominado. Sabem que a maioria já desistiu. Que os estudantes se dispersaram, cansados de tantas ocupações e sem apoio dos adultos. E que metade do país acha mesmo que dona Marisa Letícia foi corrompida com os pedalinhos com que presenteou os netos.

O poder de destruição do golpe, a manipulação da informação, a ignorância (sim, a ignorância produzida), a despolitização de todos os gestos e a ressaca da classe média produziram essa que pode vir ser a mais longa desilusão até com as próprias vontades.

E a reação talvez não seja encontrada onde se espera que esteja – num improvável e tardio retorno às ruas, porque só a direita ocupa as ruas.

Talvez a reação saia da desorganização da caçada da Lava-Jato, a partir do momento em que esta chegar também ao PSDB e que seus gestores de Curitiba perderem o controle da operação. Ou então sairá do salve-se quem puder do racha de interesses entre os próprios golpistas. Por enquanto, o que se sabe é que está tudo dominado.

Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o jornal Extra Classe.

Comentários