OPINIÃO

Boa briga

Publicado em 8 de maio de 2018

Ilustração: Ricardo Machado

Ilustração: Ricardo Machado

A política é sempre má palpiteira em assuntos de ciência, mas a ciência arregimentada para provar preceitos políticos é pior

Certas coisas são mais importantes pelo que evocam do que pelo que são. Têm um significado simbólico que às vezes suplanta a sua realidade. Foi o caso da pesquisa neurológica entre detentos de menor idade para estudar as causas da criminalidade e do comportamento agressivo, realizada não faz muito por uma universidade do Sul.

A reação ao projeto foi forte. Estudos desse tipo, segundo seus críticos, buscam argumentos para os que propõem razões biológicas e genéticas, ao contrário de culturais e sociais, para a criminalidade, e eximem a sociedade da sua culpa. Os defensores da pesquisa alegam que avanços havidos na investigação neurológica, da base puramente biológica do comportamento anômalo, tornaram obsoleta a velha questão natureza x  cultura que dividia – grosseiramente entre direita e esquerda – os psicólogos e os analistas sociais. E que uma maior compreensão do funcionamento de um cérebro criminoso não exclui a influência do meio na sua existência. O outro lado defende que pesquisas assim já partem do pressuposto de que o social não importa e só querem camuflar seu reacionarismo – no fundo, quase uma volta a teorias criminalísticas do século 19 – com pseudorrigor científico. Reacionário é quem não aceita o progresso da ciência por preconceito político, dizem os outros. Enfim, uma boa briga.

Mas o que informa, e talvez distorça, o debate mais do que tudo é que nada que se faça ou discuta nessa área deixa de evocar as experiências nazistas com a eugenia. Pode ser injusto, mas o fato de a pesquisa proposta ser com detentos e seu fim não declarado mas implícito ser a “cura” individual do desvio de conduta pela intervenção biológica ou química reforça a evocação incômoda.

Ninguém gosta de lembrar que a monstruosa experimentação dos nazistas em cobaias humanas foi predecessora direta do que viria a ser o mais revolucionário ramo da especulação científica do pós-guerra, o da manipulação genética, que abre a possibilidade de a espécie humana premeditar a prole ou programar sua progenitura – e, supostamente, seu caráter e sua índole, além de sua saúde. Mas, mais de 60 anos depois do fim da II Guerra Mundial, todas as experiências cujo objetivo seja procurar no corpo e nos genes as causas da imperfeição humana e na transformação da sua natureza a solução ainda têm que conviver com a memória dos horrores nazistas. Merecendo ou não, a evocação é inescapável.

Que lado do debate tem razão? Felizmente eu não preciso decidir. A política é sempre má palpiteira em assuntos de ciência, mas a ciência arregimentada para provar preceitos políticos é pior. E acho bom que perdure por muitos mais anos na memória do mundo o que aconteceu na Alemanha nazista, quando uma presunção de neutralidade moral levou a ciência a romper todos os limites da humanidade.

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