OPINIÃO

Uma teologia feminista para Damares

Por Carmen Silveira de Oliveira / Publicado em 20 de dezembro de 2018

Foto: Divulgação

Cena do filme Maria Madalena, de 2018

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Muitas mulheres, como eu, se sentiram desidentificadas com a recente declaração da pastora evangélica que foi escolhida para a titularidade do Ministério dos Direitos Humanos no governo Bolsonaro: “Meu sonho é estar numa rede, numa tarde e meu marido trabalhando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de jóias”.

Nada mais “fora de lugar” para muitas mulheres do que essa aspiração, já que faço parte de uma geração que foi estimulada especialmente por suas mães para ir além do papel doméstico historicamente a elas destinado. Fomos agenciadas para estudar, trabalhar, ter autonomia sobre nossos corpos, independência financeira e livre expressão de ideias. Esses deslocamentos não foram apenas determinantes para uma nova trajetória feminina em nossas famílias, uma vez que também produziram importantes mudanças geracionais nas últimas décadas.

Como a leitura bíblica tem sido o ponto de partida para as posições da nova ministra proponho sustentar o diálogo nesse mesmo campo, mas em uma perspectiva diferente: a visão da teologia feminista, em contraponto à versão patriarcal da sagrada escritura.

Em primeiro lugar, cabe destacar que muitos estudos produzidos por essas novas teólogas são embasados no Evangelho de Lucas, que resultou de informações originadas da mãe de Jesus, Maria de Nazaré. Ali se encontram narrativas de várias mulheres que acompanhavam o Messias. Elas ajudavam na manutenção da comitiva ao partilhar seus bens ou faziam ajuda humanitária às famílias pobres dos lugares por onde passavam. Algumas delas decidiram seguir o Mestre em busca de conforto espiritual, uma vez que se sentiam humilhadas e discriminadas em suas casas e comunidades. Outras mulheres haviam sido curadas de enfermidades e de “espíritos malignos”, como no caso de Maria Madalena “da qual tinham saído sete demônios”, segundo o relato original.

Uma das distorções na interpretação bíblica pelo viés patriarcal é a versão corrente de que Maria Madalena teria sido uma prostituta ou uma mulher de conduta moral reprovável. É essa a imagem que aparece, por exemplo, em muitas obras de arte. De um lado, a deturpação de sua figura como pecadora arrependida reitera uma atitude ancestral de suspeita em relação ao feminino, geralmente associado ao pecado desde Eva. Por outro lado, demarca também uma tentativa de apagar o protagonismo feminino, como salienta a teóloga Wanda Deifelt pois, ao invés de Maria Madalena ser reconhecida como uma apóstola com alguma liderança, ela é lembrada como alguém com uma falha moral. Isto contraria as evidências dela ser uma discípula com vínculos próximos a Maria de Nazaré e Jesus sendo a primeira pessoa que Ele escolheu para anunciar o seu retorno depois da crucificação, o que levou a Igreja em seus primeiros séculos a lhe conceder o título de “apostola apostolorum”, ou seja, apóstola dos apóstolos.

Outro aspecto ressaltado na Teologia Feminista é de que as mulheres que acompanhavam Jesus (Maria de Nazaré, Maria Madalena, Marta, Suzana, Joana e muitas outras) tinham uma relação de amizade com Ele e permaneceram fiéis até mesmo após sua morte. Já os doze discípulos mantinham um vínculo mestre-seguidor, que resultou na traição a Cristo em troca de moedas, nas brigas entre si e no abandono do grupo para evitar o perigo de serem presos ou mortos.

Portanto, estes fatos demarcam uma trajetória diferenciada das discípulas a partir da solidariedade e da partilha com quem pouco ou nada tem, bem como da perseverança diante dos obstáculos e da fidelidade incondicional a Jesus, mais tarde reiterada em seu trabalho público como pregadoras do Evangelho. Apesar disso, até hoje prevalece a invisibilidade das apóstolas e a reiteração dos arcaicos preconceitos em relação ao feminino. Além disto, muitas religiões não oficializaram o ministério eclesial feminino, adotando um sistema eclesiástico hierárquico e masculino.

Essas marcas patriarcais são contrastantes com as posições de Jesus pois em nenhuma parte da Bíblia se encontra uma atitude ou palavra contrária à dignidade feminina, muito menos qualquer questionamento sobre as capacidades das mulheres ou ainda limites ao seu lugar na vida doméstica ou pública. Ao contrário, ele rompe vários tabus de sua época: perdoa uma adúltera, se revela a uma estrangeira (samaritana), dialoga publicamente com as mulheres e escolhe uma delas como testemunha de sua ressurreição contrariando a tradição da época de que somente o testemunho dos homens era válido.

Como explicar, então, o fato de que os pastores (e as pastoras!) em pleno século XXI, “em nome de Jesus”, continuam a pregar a dominação masculina, a injusta divisão do trabalho na vida doméstica e a falta de mobilidade das mulheres nos espaços públicos? Em quais “Messias” se fundamentam as pregações que restringem à liberdade feminina de decisão sobre seus corpos e suas vidas? No contexto brasileiro em que as mulheres de grupos minoritários lutam arduamente pela sua sobrevivência e de suas famílias, não seria uma (outra) miragem da nova ministra/pastora evocar um ideal feminino associado ao não trabalho? Por que grudar esta imagem ao ideário de uma sociedade de desempenho em que cabe ao homem se esgotar de cansaço para que a mulher acesse bens de consumo supérfluos?

Tais situações nos alertam, sobretudo, para o fato de que estamos todos sendo submetidos a uma doutrinação religiosa que tenta manter a dominação patriarcal às custas de fake news bíblicas. Por isto, não é de estranhar que este conservadorismo se faça acompanhar também de uma certa mercantilização do religioso a serviço do retrocesso da democracia e do pensamento.

Em tal cenário, a teologia feminista é, literalmente, uma voz minoritária no campo religioso, focalizando uma mudança mais radical pela valorização feminina e a superação do seu lugar social de subalternidade. Sendo assim, não deveria ser esta outra rede a referência principal de uma ministra de direitos humanos?

*Carmen Silveira de Oliveira é psicóloga e escreve mensalmente para o site do jornal Extra Classe.

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