Ilustração: Rafael Sica
Ilustração: Rafael Sica
Os vírus estão no mundo, só que a gente precisa aprender: embora o medo e o preconceito digam o contrário, vírus não têm nacionalidade. E apesar do Trump e tantos idiotas afirmarem, o coronavírus não é chinês. Assim como não há vírus africano, europeu ou sul-americano. Tirando o nosso conhecido bozonavírus, nem mesmo vírus brasileiro existe.
O que se sabe é que, além do organismo humano, o lugar onde os vírus mais gostam de se instalar pra sobreviver é em bicho. Num convívio tranquilo, os vírus preferem os animais silvestres, mas animais domésticos são hospedeiros convidativos.
Já o ser humano, que é o pior vírus do planeta, adora comer bicho. Como carnívoros, somos o predador de todas as espécies, inclusive de outros predadores. Além da carne, a gente adora inventar refeições às custas das partes deles. E quando a gente come tudo que tem nos bichos, tem a chance da gente engolir vírus junto.
Enquanto o ser humano se divide em cabeça, tronco e membros, os animais que vão pra panela ou pra grelha são estraçalhados numa mixórdia: cabeça e orelhas, pés e patas e joelhos, rabo, miolos, coração, fígado, bucho, rins, moela, língua, bagos, tripas e sangue.
Primeiro a gente abate, de preferência com crueldade. Depois a gente carneia a torto e a direito, a seguir mistura tudo numa gororoba só. Aí a gente inventa um nome típico, e no fim a gente folcloriza como comida regional. Mas a gente nunca diz que nossa comida é exótica. Exótico são os outros.
E enquanto a gente estranha o que os outros povos saboreiam – de insetos a cobras e lagartos, de macacos a morcegos, de cachorro a cavalo, de camelo a canguru, de baiacu a escargôs – a gente lambe os beiços com miudezas de arrepiar: feijoada, sarapatel, dobradinha, mocotó, mondongo, rabada, buchada de bode, morcilha, charque.
Sem falar nos comensais menos abastados, cuja dieta inclui, nos seus melhores dias, o calango e até o rato urbano. Se o homem é o que come, tem muita gente sem identidade no Brasil.
Dos cardápios ancestrais, desde as sobras das carnificinas animalescas até os costumes tribais canibalescos, a gente herdou dos antepassados um apetite insaciável: vai além do que abatedouros mal fiscalizados e açougues imundos oferecem – ele quer o exotismo. Busca o perigo na comilança, o risco no prato.
É essa voracidade animal que nos anima nos fogões, restaurantes, mercados, food trucks e ambulantes. Ela nos impele ao imprevisível e inesperado encontro com os vírus que habitam nosso banquete de cada dia. O vírus está em nosso menu e nós no dele. Não é só peixe que morre pela boca.
Fraga é escritor, humorista, publicitário. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.