POLÍTICA

BLOWBLACK

José Luis Fiori / Publicado em 28 de novembro de 2002

“Blowback é um termo que foi inventado pelos oficiais da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, para referir-se às conseqüências indesejadas ou não-buscadas das políticas e ações militares norte-americanas, através do mundo”.
Chalmers Johnson, Blowback, 2001, pg 8

Um dos problemas mais difíceis da Guerra é prever e controlar suas conseqüências inesperadas. É isto que faz uma boa parte do establishment norte-americano e dos governantes do mundo titubearem frente à hipótese de uma 2º Guerra do Iraque. Sabem que ela terá conseqüências incontroláveis, no Golfo Pérsico, no Oriente Médio, no mundo árabe e islâmico e na Ásia Central. Uma cadeia de efeitos que irá muito além da região e deverá atingir o próprio coração do sistema, afetando as relações entre as Grandes Potências. A 1º Guerra do Iraque, em 1991, foi feita em nome da soberania nacional do Kuwait, por uma aliança de 27 países; e as “intervenções humanitárias” da década de 1990, na Somália, Bósnia e Kosovo, foram feitas em nome de “valores universais” e de um sistema de segurança global, apoiado pelas Nações Unidas. A nova guerra tem uma natureza completamente diferente: é unilateral, preventiva e se propõe mudar um governo nacional. Se for feita, significará uma revolução no campo internacional, com o reconhecimento do direito anglo-saxônico ao imperium, e a aceitação pelos demais países de que “os impérios não operam dentro de um sistema internacional, se propondo ser o próprio sistema internacional”, como diz Henry Kissinger. O mais provável, entretanto, é que a comunidade internacional não aceite esta proposta e, nesse caso, a iniciativa anglo-saxônica pode produzir um efeito “não-buscado” absolutamente paradoxal, ou seja, o renascimento e a vitória de um velho pesadelo geopolítico dos ingleses e norte-americanos.

Em 1904, o pai da geopolítica inglesa, Sir Halford Mackinder, formulou, de maneira sintética e contundente, o princípio organizador de toda a política externa inglesa, no século XIX, e da doutrina estratégica norte-americana, no século XX: “Quem controla a Europa oriental controla a terra central, quem controla a terra central domina a ilha mundial ( a Eurásia) e quem domina a ilha mundial dominará o mundo”, concluindo que “um império mundial estará em vias de se concretizar, no dia em que a Alemanha se alie à Rússia, de forma duradoura”. Essa foi a obsessão do almirante Alfred Mahan, chamado pelos norte-americanos de “Clausewitz do mar”, que se propôs elaborar uma estratégia global para os Estados Unidos, já na segunda metade do século XIX: “Jamais permitir que o coração do mundo, a Europa, seja dominada por uma das grandes potências do Continente”. Tese que foi reafirmada por Nicholas Spykman, ao defender – antes do fim da II Guerra Mundial – que o mais importante para os Estados Unidos era impedir a “unificação do espaço euro-asiático, sob uma só autoridade”, independente de ideologias, regimes políticos ou sistemas econômicos. Muitas décadas mais tarde, depois do fim da Guerra Fria, Henry Kissinger voltaria a bater na mesma tecla: “A dominação por um simples poder, de uma das duas principais esferas da Eurásia – Europa e Ásia –, permanece uma boa definição do principal perigo estratégico para a América, com ou sem Guerra Fria”. Trata-se de uma ampla coincidência em torno a um objetivo fundamental: impedir qualquer tipo de hegemonia ou de aliança estratégica, entre a Alemanha e a Rússia, dentro do espaço europeu, e entre a Rússia e a China, dentro do espaço asiático. Esse foi o objetivo que levou a Inglaterra a enfrentar e derrotar a França de Bonaparte, e manter-se eqüidistante dos países da Santa Aliança, depois do Congresso de Viena, em 1815. O mesmo objetivo que levou Inglaterra, França e Estados Unidos às duas Guerras Mundiais contra Alemanha, e que se manteve vigente na estratégica de contenção universal da União Soviética, durante a Guerra Fria. Não se pode esquecer ainda a iniciativa Nixon-Kissinger de aproximação da China, em 1970, para impedir uma aliança e hegemonia comunista, na Ásia.

Depois de 200 anos de sucesso, entretanto, a nova guerra, preparada por George Bush e Tony Blair, poderá romper com esta tradição estratégica, responsável pelo poder mundial dos países anglo-saxões. Alemanha, Rússia, França e China são os principais países que se opõem a uma 2º Guerra do Iraque. Mas é provável que a França acabe voltando à sua posição de costume, de participação reticente ao lado dos Estados Unidos e da Inglaterra. Enquanto isso a Rússia e a China devem se manter numa posição menos ativa acompanhando à uma certa distância, o desenvolvimento dos acontecimentos. Mas este não é o caso da Alemanha, que já deu um passo à frente e declarou que não participará de uma ação militar nem apoiará a guerra, mesmo no caso em que seja autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Chanceler alemão, Gerhard Schroeder, foi além e chegou ao ponto de declarar que “os Estados Unidos estão cometendo um erro terrível”.

Desde a Guerra do Kosovo, está cada vez mais visível a impotência militar e a inoperância da política externa comum dos europeus, e é cada vez mais frágil a posição intra-européia dos franceses, divididos entre sua aliança com a Alemanha, na União Européia e seu tradicional alinhamento militar com os anglo-saxões. É nesse contexto que vem crescendo a autonomia e a importância da política externa da Alemanha, nestes últimos anos. Uma nova Guerra do Golfo deverá dividir e fragilizar ainda mais a União Européia, e promovendo a volta da Alemanha a uma posição de liderança, dentro da Europa e no jogo político internacional. O grande fantasma está de volta, e, neste momento, duas versões de uma mesma história vêm à cabeça de todos que especulam sobre o futuro da Alemanha como dona do seu próprio destino e potência mundial.

A primeira versão começa em 1862, no momento em que o príncipe Otto von Bismarck – chanceler e principal artífice da unificação alemã de 1871- declara que “as grandes questões da atualidade serão decididas não por discursos ou maioria de votos, mas pelo sangue e pelo ferro”. Antecipou assim o caminho que levou ao nascimento da Alemanha, através de três guerras sucessivas da Prússia, contra a Dinamarca em 1864, contra a Áustria em 1866, e contra a França em 1871. É verdade que, depois disto e até 1890, Bismarck conduziu uma política externa pacifista, de tranqüilização e consolidação do papel da Alemanha entre as grandes potências européias. Mas foi neste mesmo período que a Alemanha conseguiu se industrializar rapidamente, orientada por uma projeto econômico nacionalista e voltado para o fortalecimento do poder do estado e a construção do império alemão. Como resultado, no início do século XX, a Alemanha já era a segunda potência industrial do mundo, superada apenas pelos Estados Unidos. Logo depois, a Alemanha propunha – pela primeira vez – a criação de uma “união européia” e se lançava em suas duas tentativas de hegemonização continental, bloqueadas e derrotadas nas duas Guerras Mundiais.

Porém existe uma outra versão da mesma história, menos lembrada pelos governantes do Atlântico Norte. Seu primeiro capítulo foi escrito pela Reforma de Lutero, no século XVI, a primeira grande contestação, com raízes populares, do poder ideológico de Roma, e do poder político de Carlos V e do seu Sacro Império Romano Germânico. O segundo capítulo foi escrito, no século XVII, pela Guerra dos Trinta Anos (1618-48), que envolveu todas as potências européias, mas que foi travada quase só no território alemão. Em 1648, a paz assinada em Westphalia consagrou o direito à soberania nacional dos estados europeus, mas transformou o território germânico num mosaico de 350 principados independentes, separados e sob a tutela das grandes potências. No início do século XIX, Bonaparte dissolveu o que restava do antigo Império Germânico, mas, depois da sua derrota, o Congresso de Viena redividiu o território e criou uma Confederação Germânica, que ficou sob a tutela da Áustria e da Prússia, até 1866. Em síntese, o que esta outra história nos conta é que a Alemanha foi um estado bloqueado e impedido de nascer até o século XIX, pela ação militar e diplomática da Áustria, Prússia, França e Rússia, mas também da Inglaterra, Espanha e Holanda, as Grandes Potências da época. Foi isso que ‘atrasou’ o nascimento do estado alemão, e é por isso que ele nasceu da guerra e viveu sempre tão marcado pela sua origem e pela necessidade constante de garantir e expandir seu “espaço vital”. Mas depois da II Guerra Mundial, a Alemanha Ocidental voltou à sua condição inicial, transformada numa obra política e econômica artificial da Guerra Fria, um verdadeiro protetorado militar e econômico dos seus velhos adversários. A própria “união européia” que havia sido pensada pelos alemães, nos anos 20/30, acabou se transformando numa maneira de domesticar a “ovelha negra”, oferecendo-lhe a preoeminência econômica, mas submetendo-a à liderança politica francesa e ao policiamento militar da Otan. Por fim, não há dúvida de que o Muro de Berlim foi construído pelo governo comunista da Alemanha Oriental, mas a verdade é que ele também realizou um sonho antigo de muitos europeus ‘ocidentais’: separar os dois lados da alma alemã, sua ‘civilidade’ liberal e ocidental, do seu lado autoritário e prussiano.

Henry Kissinger afirma na conclusão do seu livro “Diplomacy”, “that it is in no country’s interest that Germany and Russia should fixate on each other as either principal partner or principal adversary. If they become too close, they raise fears of condominium; if they quarrel, they involve Europe in escalating crises”. Hoje, os alemães já são o principal sócio e investidor no processo de reconstrução econômica da Rússia, e não é provável que voltem a cometer os erros do passado. Pelo contrário, devem tentar seguir os caminhos do poder traçados pelos mercados e pelos capitais. Mas não é improvável que uma guerra anglo-saxônica contra o Iraque (sobretudo se contar com a adesão final da França), acabe criando e aprofundando laços de natureza político-estratégica entre a Alemanha e a Rússia. Ao longo prazo, portanto, o segundo grande “blowback” de uma Guerra do Iraque, poderá ser o nascimento de uma poderosa coalizão de poder no centro da Europa. Exatamente aquilo que Sir Halford Mackinder ensinou aos ingleses – na sua magnífica conferência sobre “O Pivô Geográfico da História”, na Royal Geographic Society, no dia 25 de janeiro de 1904 – que jamais deveriam deixar que acontecesse.

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