POLÍTICA

As Eleições Americanas

José Luís Fiori / Publicado em 16 de outubro de 2004

Existe um consenso na análise internacional: o poder global dos Estados Unidos, no início do século XXI, é muito superior ao de todos os estados nacionais que conseguiram impor sua hegemonia regional ou global, desde o século XVI. Fala-se cada vez mais em império, e transformou-se num lugar comum comparar os Estados Unidos com o Império Romano. Os Estados Unidos saíram da Guerra Fria na condição de hiperpotência, vitoriosa no campo ideológico e econômico e sem adversários geopolíticos capazes de concorrer no campo militar. A União Soviética se desintegrou junto com o projeto socialista, e a Rússia ainda precisará de muitos anos para recompor seus pedaços e alcançar a condição de grande potência econômica; o Japão e a Alemanha, a segunda e a terceira maior economia do mundo, seguem estagnados e na condição de protetorados militares dos Estados Unidos; a União Européia move-se em câmara lenta rumo à sua unificação efetiva, contida por suas divergências e conflitos seculares, que impedem que ela se transforme num verdadeiro estado supranacional; a China é a economia que mais cresce no mundo e tem um projeto estratégico de longo prazo do qual não se afasta, projeto que a levará à condição de grande potência, mas ela não parece disposta a enfrentamentos imediatos, que não seja por causa de Taiwan. O resto do mundo parece condenado a um conflito prolongado, como no Oriente Médio, ou a uma longa exclusão econômica do sistema mundial, como no caso da África, ou ainda a um crescimento vegetativo e errático, mas sem nenhuma relevância geopolítica, como no caso da América Latina. Em síntese, os Estados Unidos ocupam uma posição de poder absolutamente confortável e inquestionável no início do século XXI, resultado de uma estratégia continuada e conseqüente de conquista do poder global que se delineou no início do século XX, se expandiu depois da Segunda Guerra Mundial e alcançou seu pleno sucesso depois de 1991, quando os Estados Unidos chegaram mais perto do que nunca da possibilidade de constituição de um “sistema imperial mundial”.

Logo depois da queda do Muro de Berlim, o presidente Bush-pai, fez um pronunciamento na Assembléia Geral das Nações Unidas de 1990, num tom que lembrava a linguagem e a proposta liberal internacionalista do presidente Woodrow Wilson, em 1918: “nós temos um projeto de uma nova parceria entre as nações que transcende as divisões da Guerra Fria. Uma parceria baseada na consulta mútua, na cooperação e na ação coletiva, especialmente através das organizações internacionais e regionais. Uma parceira baseada no princípio da lei e suportada por uma repartição justa dos custos e das responsabilidades. Uma parceira cujos objetivos sejam aumentar a democracia, a prosperidade e a paz e reduzir as armas” (cit. Kissinger, 1994, p. 805). No entanto, o próprio presidente Bush constituiu, em 1989, uma força-tarefa encarregada de delinear as bases do que deveria ser a nova estratégia mundial dos Estados Unidos, depois da Guerra Fria, que foi presidida pelo seu secretário de defesa, Dick Cheney, e incluía Paul Wolfowitz e vários outros membros do governo posterior do segundo Bush, como Lewis Libby, Eric Edelman e Donald Rumsfeld, além de Colin Powell. Com base no relatório deste grupo de trabalho, o presidente Bush fez um discurso absolutamente diferente do das Nações Unidas frente ao Congresso Americano – em agosto de 1990 –, defendendo uma política externa de contenção ativa de qualquer tipo de potência regional concorrente com os Estados Unidos e que pudesse aspirar algum dia ao poder global, como havia sido o caso da União Soviética.

Em setembro de 1993, o novo presidente democrata Bill Clinton, falando frente à mesma Assembléia Geral das Nações Unidas, disse quase o mesmo que George Bush, três anos antes: “numa nova era de perigos e oportunidades, nosso propósito é expandir e fortalecer a comunidade mundial e as democracias baseadas no mercado. Agora nós queremos alargar o círculo das nações que vivem sob instituições livres, porque nosso sonho é que, um dia, as opiniões e energias de cada pessoa no mundo tenham plena expressão dentro de democracias prósperas que cooperam entre si e vivam em paz” (Idem, p. 805). Declaração que contém todas as idéias chaves do pensamento político hegemônico na década de 1990: a ideologia da “globalização”, o projeto liberal de desregulação e a abertura de todos mercados e todas fronteiras, para promover a democracia e a paz. “Num mundo globalizado, os conceitos de esfera de influência e equilíbrio de poder perderiam sua validade e a própria guerra ficaria anacrônica. Em vez disso, uma trama de redes eficientes e bem-reguladas manteria as nações unidas, na busca comum da prosperidade. O comércio e o investimento floresceriam em benefício de todos, e o desenvolvimento econômico promoveria os ideais e os governos democráticos” (Bacevich, 2002, p, 42).

Essa foi a imagem que ficou em quase todo mundo, da “era Clinton”, como se tivesse sido um período em que o governo americano acreditou de fato no poder pacífico dos mercados e na força econômica convergente da globalização. Mas na prática, a administração Clinton seguiu as mesmas idéias básicas do governo Bush-pai, os dois igualmente convencidos de que o século XXI seria um “século americano”, como disse Bush, e de que o “mundo necessitava dos Estados Unidos”, como costumava repetir Magdeleine Albright, a Secretária de Estado de Clinton. A verdade é que o governo Clinton manteve um ativismo militar sem precedentes durante seus dois mandatos. Segundo relatório da U.S. Comission on National Security, de 1999, durante a era Clinton “os Estados Unidos se envolveram em 48 intervenções militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria, período em que ocorreram 16 intervenções militares” (Washington D.C. 1999, p.128), incluindo os ataques à Somália em 1992/1993; o bombardeio da Bósnia, nos Bálcãs, em 1995; o bombardeio do Sudão, em 1998; a guerra do Kosovo, na Iugoslávia, em 1999; e o bombardeio quase constante do Iraque, entre 1993 e 2003. É necessário relembrar que foi também o presidente Bill Clinton que anunciou, em fevereiro de 1998, ao lado do primeiro ministro inglês Tony Blair, a nova Guerra do Golfo ou do Iraque, que acabou sendo protelada até o ano de 2003.

Neste mesmo período, os Estados Unidos consolidaram e expandiram seus acordos e bases militares, incluindo agora a região da Europa Central e com uma presença militar efetiva em cerca 90 países, distribuída por todos os continentes, menos na Antártica. Por isso, Chalmers Johson – professor emérito da Universidade da Califórnia – concluiu que “entre 1989 e 2002 ocorreu uma revolução nas relações da América com o resto do mundo. No início deste período, a condução da política externa norte-americana era basicamente uma operação civil. Por volta de 2002, tudo isso mudou. Os Estados Unidos não têm mais uma política externa, têm um império militar. Durante este período de pouco mais do que uma década, nasceu um vasto complexo de interesses e projetos que eu chamo de império e que consiste de bases navais permanentes, guarnições, bases aéreas, postos de espionagem e enclaves estratégicos em todos os continentes do globo” (Johnson, 2004, p. 22 e 23).

Mas, além disso, apesar da sua retórica multilateralista, o governo Clinton manteve a mesma reticência do governo de Bush-filho, com relação a qualquer de tipo de acordo, compromisso ou regime internacional que pudesse afetar a capacidade de ação unilateral dos Estados Unidos. Depois de 2001, a administração Bush mudou a retórica dominante da política externa americana, trouxe o inimigo externo e a guerra para o seu primeiro plano e passou a defender de forma explícita o direito unilateral dos Estados Unidos de intervenção em qualquer lugar do mundo. Mas, em nenhum momento, o governo Bush abandonou a ideologia e a defesa ativa da abertura e desregulação de todos os mercados e dos sistemas de comunicação, energia e transportes em todo mundo.

Nesse sentido, parece cada vez mais claro que, depois do fim da Guerra Fria, constituiu-se um grande consenso em torno da estratégia de longo prazo dos Estados Unidos. Do ponto de vista estritamente retórico, é possível identificar dois grandes grupos dentro da política externa americana, como diz Chalmers Johnson: “aqueles que advogam a dominação americana irrestrita e unilateral do mundo e aqueles que defendem um imperialismo com objetivos ‘humanitários’” (Johnson, 2004, p. 67). Mas no essencial, o projeto imperial é o mesmo e não é provável que ocorra nenhuma mudança significativa num futuro próximo. Assim, do ponto de vista das expectativas dos demais países, podem ter certeza de que não haverá um novo período de “hegemonia benevolente” – como entre 1945 e 1973 – nem tampouco uma adesão norte-americana a qualquer tipo de “governança multilateral” do mundo, independentemente de quem vencer as próximas eleições presidenciais norte-americanas.

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