POLÍTICA

O discurso e a história

José Luís Fiori / Publicado em 15 de novembro de 2004

“Os antigos súditos converteram-se em devedores perpétuos do sistema econômico internacional. Poderosa e onipresente, uma engrenagem invisível comanda o novo sistema.”
Presidente Lula, Discurso de abertura da 59ª Assembléia Geral da ONU

O presidente brasileiro fez um discurso incisivo na abertura da 59ª Assembléia Geral das Nações Unidas, no dia 21 de setembro de 2004, tratando dos temas da guerra e da paz, do terrorismo e da injustiça social mundial, e citou Franz Fanon para referir-se à herança de miséria deixada pelo “velho colonialismo”, que durou até a primeira metade do século XX. E advertiu, imediatamente, para a nova forma de submissão e desigualdade que vem sendo instalada no mundo pela “engrenagem invisível” do sistema econômico mundial; em particular, dos seus mercados financeiros e sua globalização “assimétrica e excludente”.

Como não se tratava de uma análise histórica, o presidente não precisou referir-se ao parentesco direto que existe entre o antigo colonialismo e as novas formas de controle financeiro – e submissão real – da periferia do sistema capitalista. Se tivesse tomado este caminho mais acadêmico, o presidente teria que ter relembrado aos membros da Assembléia (na sua maioria, representantes das antigas colônias européias) que a expansão colonial da segunda metade do século XIX foi justificada, em muitos casos, exatamente pela necessidade de cobrar ou garantir o pagamento das dívidas externas, contraídas junto aos bancos privados ingleses e franceses pelos países exportadores das matérias-primas requeridas pelo crescimento do sistema industrial europeu. É exemplar, neste sentido, a trajetória da colonização de quase todos os territórios que pertenceram, em algum momento, ao antigo Império Otomano. Em quase todos os casos, esta história começava pela assinatura (muitas vezes imposta pela força) de Tratados Comerciais que obrigavam os países signatários a eliminarem suas barreiras comerciais, permitindo o livre acesso das mercadorias e dos capitais europeus. Esses tratados foram estabelecidos com países de quase todo o mundo, que acabaram por se especializar na exportação das matérias-primas necessárias à industrialização européia. Com a abertura de suas economias, os governos desses países tiveram que se endividar junto à banca privada inglesa e à francesa para cobrir os recursos perdidos com o fim das taxas alfandegárias. Por isso, nos momentos de retração cíclica das economias européias, esses países periféricos enfrentaram, invariavelmente, problemas de balanço de pagamentos, sendo obrigados a renegociar suas dívidas externas ou a declarar moratórias nacionais. No caso da América Latina, as dívidas e moratórias foram solucionadas através de renegociações com os credores e da transferência destes custos para as populações nacionais. No resto do mundo, a história foi diferente: a cobrança das dívidas acabou justificando a invasão e a dominação política de muitas destas novas colônias, criadas no século XIX.

Hoje, essa mesma situação está sendo reposta pelo novo endividamento das economias periféricas junto ao sistema financeiro internacional, e por isso o presidente afirmou com razão que “os antigos súditos converteram-se em devedores perpétuos do sistema econômico internacional”, e deixou em aberto a pergunta sobre as novas formas possíveis de colonialismo que estariam sendo construídas através do mundo. Um bom momento para repensar as opções feitas pelo Brasil e que foram responsáveis pela nossa inserção dentro do sistema mundial, porque o Brasil foi, até hoje, um dos casos exemplares de aplicação e aceitação da doutrina do livre-cambismo que esteve por trás de todos aqueles grandes “tratados comerciais” assinados no século XIX. Primeiro foram os Tratados de Comércio assinados pela Coroa Portuguesa com a Inglaterra, em 1806 e 1810, e com a França, em 1816; e logo depois da independência, de novo com a Inglaterra, o Tratado de Amizade, Navegação e Comércio, em 1827, seguido por acordos análogos com a Áustria e a Prússia, no mesmo ano de 1827, e com a Dinamarca, os Estados Unidos e os Países Baixos, em 1829. No entanto, depois de 1841, só seguiram vigentes os tratados de comércio com a França e a Inglaterra. Como conseqüência, o Brasil ficou marginalizado dentro do sistema mundial e completamente fora do dinamismo criado pela competição entre as grandes potências, sendo transformado num laboratório de experimentação do “imperialismo de livre-comércio” e num apêndice do sistema econômico liderado pela Inglaterra.

Essa situação se manteve mesmo depois da proclamação da República, com o Brasil permanecendo prisioneiro do seu modelo “primário-exportador”, pelo menos até a crise mundial de 1930. Nesse período o país seguiu sendo uma economia submetida às regras e políticas liberais impostas pelo padrão-ouro, e seu crescimento e modernização se deram graças à complementaridade entre a sua economia interna e a economia mundial, e graças à integração do país com as finanças inglesas que acentuaram o caráter cíclico de dependência externa da economia brasileira. Nas fases expansivas da economia mundial, os banqueiros ingleses financiaram a economia brasileira e, sobretudo, a expansão da sua infra-estrutura de transporte e comunicação. Mas nas fases de contração da economia mundial, o país foi obrigado a fazer ajustes periódicos da economia, ou a declarar moratória, como aconteceu em 1897.

Entre a crise econômica mundial de 1930 e o início da IIª Guerra, no campo aberto pela luta entre as Grandes Potências, o Brasil conquistou algum espaço de manobra para sua política externa, e reagiu ao “estrangulamento econômico” adotando políticas que fortaleceram o estado central e a sua economia nacional. Mas sua autonomia política durou pouco, e em 1938 o Brasil já havia se alinhado ao lado da nova liderança mundial norte-americana. Do ponto de vista econômico, contudo, a resposta à crise dos anos 30 obrigou o Brasil a um protecionismo pragmático para enfrentar o problema da escassez de divisas, o qual acabou estimulando um processo quase espontâneo de “substituição de importações”. Um processo embrionário que deu impulso à industrialização, mas que acabou enfrentando limites claros e imediatos que só foram superados quando a restrição externa deu origem, a partir de 1937/38, a um projeto de industrialização liderado pelo Estado e voltado para o mercado interno.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o Brasil não teve posição relevante na geopolítica da Guerra Fria, mas foi colocado na condição de principal sócio econômico dos Estados Unidos dentro da periferia sul-americana. Não houve Plano Marshall para a América Latina. Nem o Brasil foi incluído na categoria dos países “desenvolvimento a convite”, (como ocorreu com um “pedaço” da Ásia), nem foi estimulado fortemente por um acesso favorecido aos mercados norte-americanos. Mesmo assim, o Brasil se transformou numa experiência original de desenvolvimento acelerado e “excludente”, sob a liderança dos investimentos estatais e do capital privado estrangeiro, proveniente de quase todos os países do núcleo central do sistema capitalista. Durante todo o “período desenvolvimen-tista”, o Brasil manteve uma das mais elevadas taxas médias de crescimento mundial, ao lado de taxas crescentes de desigualdade social.

Apesar do alinhamento forçado pela Guerra Fria, foi neste período que o Brasil começou a exercitar uma política externa, mais autônoma, combativa e global. Foram momentos importantes desta nova trajetória as propostas da Operação Pan-Americana, em 1958, e da Operação Brasil-Ásia, nos anos 1959-60, ao mesmo tempo em que ocorria uma maior aproximação da Europa e da África Negra e em que o governo brasileiro também revia suas relações econômicas internacionais rompendo seu Acordo com o FMI. Mas não há duvida de que a grande mudança ocorreu no início da década de 60, com a Política Externa Independente inaugurada pelo governo Jânio Quadros, responsável pelas novas relações do Brasil com América Latina, Ásia e África, mas também com o mundo socialista e com o Movimento dos Países Não-Alinhados. Uma estratégia mais autônoma com relação aos Estados Unidos, mais aberta às demais regiões e países do mundo e mais combativa no plano das negociações comerciais e financeiras do país, como ficou claro no apoio à criação da ALALC, na participação brasileira na UNCTAT e no Grupo dos 77, nas décadas de 60 e 70. Esta posição foi mantida, em grandes linhas, pela política externa de quase todos os governos militares, a despeito do seu alinhamento ferrenho em torno da causa anticomunista, e também depois da redemocratização, com a política externa do governo Sarney. Foi só durante os governos de Fernando Henrique Cardoso que o país se alinhou incondicionalmente ao programa de políticas e reformas liberais que o recolocaram no espaço e na posição que teve durante todo o século XIX e até a crise de 1930.

No início dos anos 90, a vitória americana na Guerra Fria, a nova utopia da globalização e mais uma onda de liquidez internacional criaram as bases materiais e ideológicas da nova virada liberal das elites e do estado brasileiro. Do ponto de vista geopolítico, – em particular no perío-do FHC – o governo brasileiro apostou num sólido alinhamento com os Estados Unidos e seu projeto de globalização liberal, aceitando a internacionalização dos centros de decisão brasileiros e a fragilização do Estado em troca de um projeto de governança global rigorosamente utópico. Do ponto de vista econômico, a disponibilidade de capitais internacionais financiou o abandono da estratégia desenvolvimentista e a volta às políticas econômicas ortodoxas e ao livre-cambismo do século XIX. Como conseqüência, aprofundou-se a “restrição externa” da economia brasileira, e o Brasil foi recolocado no lugar preferido pelas suas elites, desde os tempos do Império Britânico: uma inserção mundial liberal e de cócoras. A mesma posição, como disse o presidente Lula, que até hoje, e cada vez mais, “revoga decisões democráticas, desidrata a soberania dos estados, e sobrepõe-se a governos eleitos, exigindo a renúncia a legítimos projetos de desenvolvimento nacional”. Exatamente aquilo que Richard Cooper – assessor internacional do primeiro-ministro Tony Blair – defende como sendo uma forma virtuosa de “imperialismo voluntário da economia global, gerido por um consórcio internacional de instituições financeiras como o FMI e o Banco Mundial”, e próprio para países que “se abrem e aceitam pacificamente a interferência das organizações internacionais e dos estados estrangeiros”.

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