POLÍTICA

Estado policial versus estado de direito

Ilegalidade e uso político das escutas divulgadas pelo Juiz Federal Sérgio Moro são objeto de críticas e colocam as instituições e a democracia em risco
Por Flávio Ilha / Publicado em 18 de março de 2016
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) realiza audiência pública interativa para instruir o PLS 402/2015, que altera o Código de Processo Penal, em relação aos recursos. Mesa (E/D): relator do PLS 402/2015, senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES); juiz federal, Sérgio Fernando Moro; presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB no Ceará, Fábio Zech Sylvestre Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

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Juiz Federal Sérgio Moro (centro), na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), do Senado

Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Muito mais do que um terremoto político que ameaça a integridade das instituições democráticas, a divulgação de escutas telefônicas envolvendo a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo juiz Sérgio Moro, que coordena a Operação Lava Jato, provocou uma enxurrada de críticas ao caráter “policialesco” e “midiático” da iniciativa. Adotada em resposta quase que imediata à nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil do governo, na última quarta-feira (16), a escuta revelou diálogos privados do ex-presidente com diversos agentes políticos e a suspeita de que o grampo, realizado pela Polícia Federal, tenha atingido até mesmo telefones do Palácio do Planalto.

“É uma ilegalidade, na medida em que atingiu pessoa [a presidente Dilma Rousseff] para a qual não existia autorização de autoridade competente para a escuta”, diz a desembargadora aposentada Magda Barros Biavaschi. A desembargadora considerou a divulgação das gravações “gravíssima”. Segundo ela, o Supremo Tribunal Federal (STF) já deliberou que qualquer interceptação, mesmo autorizada judicialmente, que se deparar com alguém que tenha foro privilegiado – no caso, a presidente Dilma – o conteúdo deve ser encaminhado “imediatamente à autoridade judicial competente”, o que não aconteceu.

Brasília - DF, 17/03/2016. Presidenta Dilma Rousseff durante cerimônia de posse dos novos Ministros de Estado Chefe da Casa Civil, Luiz Inácio Lula da Silva; da Justiça, Eugênio Aragão; da Secretaria de Aviação Civil, Mauro Lopes e do Chefe de Gabinete Pessoal da Presidenta da República, Jaques Wagner. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

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Posse de Luiz Inácio Lula da Silva Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil pela presidente Dilma Roussef horas antes da divulgação dos grampos

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

A desembargadora vai mais longe: afirma que a divulgação ilegal das escutas deve ser atribuída a quem comandou a interceptação – no caso, o juiz da 13ª Vara Federal da Justiça do Paraná, Sérgio Moro. “E, se comprovado que o grampo partiu de telefones da presidência da República, como tem se especulado, pode inclusive ensejar o afastamento da jurisdição”, ponderou a magistrada. Além disso, Magda disse que não detecta qualquer ilegalidade na nomeação de Lula para a Casa Civil. “É um ato discricionário do chefe de poder, imune a considerações subjetivas do tipo ‘fugir do juiz natural’. O ato se insere no campo da política, não do direito”, completa.

ILEGALIDADE – O jurista Lenio Streck, professor titular do programa de pós-graduação em Direito da Unisinos, chega a cunhar uma expressão irônica para definir a intervenção do coordenador da Lava Jato na seara política: Morogate, em referência à espionagem que levou o ex-presidente norte-americano Richard Nixon à renúncia em 1974. “Houve várias ilegalidades e uma flagrante exorbitância de função, além de prejuízo à imagem da presidente da República. A interceptação das conversas da presidente ocorreu mais de duas horas depois da escuta ter sido cancelada oficialmente, mas mesmo assim o conteúdo foi divulgado”, afirma.

Streck cita a lei federal 9.296/96 que regulamenta o artigo 5º da Constituição sobre interceptações telefônicas: no artigo 8, a lei determina que as interceptações serão apensadas aos inquéritos policiais “preservando-se o sigilo das diligências, gravações e respectivas transcrições”. No artigo 10, a mesma lei considera crime realizar escutas sem autorização judicial – o juiz Sérgio Moro informou, logo depois do episódio da última quarta-feira, que havia suspendido os grampos telefônicos às 11h20. A gravação entre Dilma e Lula foi gravada às 13h32. “Não importa quem seja. É um erro gravíssimo e acho que o doutor Moro está em maus lençóis”, opina o jurista. Além disso, Streck invoca o artigo 17 de Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que disciplina a divulgação de escutas telefônicas e proíbe a exposição de pessoas com foro privilegiado.

CONDUTA – O Sindicato dos Advogados de São Paulo já anunciou, nesta sexta-feira (18), que vai ingressar com uma representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra a conduta de Moro. Segundo o presidente Aldimar de Assis, o juiz cometeu ilegalidades tanto ao grampear Dilma quanto ao divulgar o teor das gravações. “Nossa representação pede também que cessem imediatamente as ilegalidades e obstruções ao exercício da advocacia, praticadas por um magistrado que perdeu completamente a isenção e a imparcialidade necessárias à prática da Justiça”, afirmou.

Um dia depois da divulgação das escutas, o boletim de notícias do Consultor Jurídico denunciou que Moro autorizou ilegalmente escutas telefônicas de 25 advogados que atuam no escritório de Roberto Teixeira, defensor do ex-presidente Lula desde o início dos anos de 1980. Os profissionais atendem cerca de 300 clientes diariamente por telefone. A escuta foi autorizada, segundo a instituição, porque os procuradores federais da força-tarefa da Lava Jato afirmaram que o PABX do escritório pertencia à empresa de palestras de Lula – a LILS Palestras e Eventos. A informação é mentirosa e não resiste a uma pesquisa instantânea pelos aplicativos de busca da internet.

O telefone celular de Teixeira foi incluído por Moro na lista de grampos uma semana depois, sob a alegação de que não havia clareza sobre a relação cliente/advogado e por indícios de envolvimento do profissional na aquisição do sítio de Atibaia (SP) que supostamente pertence a Lula. A inviolabilidade da comunicação entre advogado e cliente está prevista no artigo 7º do Estatuto da Advocacia. Segundo a norma, é um direito do advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

CRÍTICAS – A ação do juiz provocou também uma enxurrada de críticas de advogados e associações profissionais. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção Rio de Janeiro, divulgou uma dura nota de repúdio à divulgação dos áudios no mesmo dia que os grampos foram tornados públicos. A instituição classificou o episódio como “típico de estados policiais”.

“É fundamental que o Judiciário, sobretudo no atual cenário de forte acirramento de ânimos, aja estritamente de acordo com a Constituição e não se deixe contaminar por paixões ideológicas”, diz o comunicado da OAB carioca. A Ordem se mostra preocupada com a “preservação da legalidade e dos pressupostos do Estado Democrático de Direito” e afirma que a divulgação das escutas em veículos de imprensa foi “editada e seletiva”. A nota diz ainda que a publicidade das gravações “coloca em risco a soberania nacional e deve ser repudiada, como seria em qualquer República democrática no mundo”.

“A serenidade deve prevalecer sobre a paixão política, de modo que as instituições sejam preservadas. A democracia foi reconquistada no país após muita luta, e não pode ser colocada em risco por ações voluntaristas de quem quer que seja. Os fins não justificam os meios”, conclui a entidade.

Juiz de direito em São Paulo e membro da Associação dos Juízes para a Democracia, Marcelo Semer identifica nas ações da Lava Jato e do coordenador da força-tarefa, Sérgio Moro, a tentativa de um “estado policial” substituir o estado de direito. “As novas formas de prisão, com o intuito de forçar uma delação, e a divulgação de conversas privadas com motivação política são um claro exemplo disso. Nós nem deveríamos estar ouvindo essas conversas”, alerta o juiz.

CONSTITUIÇÃO – Professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Geraldo Prado acusa Moro de tentar pressionar o STF a considerar válidas as provas obtidas de forma ilícita. “Ao longo de todo o processo o magistrado buscou apequenar as garantias constitucionais. Fez pouco caso da imparcialidade nas investigações, decretou prisões em inquérito sem levar em conta a presunção de inocência e defendeu explicitamente a necessidade de relativizar o uso da prova ilícita. Em suma, construiu [na Lava Jato] a sua própria Constituição à revelia daquela que dirige os atos dos juízes de direito”, critica. “Se sinceramente confiasse no STF, bastava enviar os autos das gravações ao Supremo”, completa Prado.

O jurista diz que, ao “explodir o caldeirão”, Moro desafiou os ministros do STF – alguns dos quais citados negativamente nas conversas do ex-presidente Lula. “[Os ministros] terão coragem de honrar seu juramento de defesa da Constituição, mesmo contra a opinião, para declarar a ilicitude da conduta [de Moro]? Ou, ao contrário, darão à prova ilícita um valor que ela não tem, direcionando para o STF a frustração de grande parte da opinião pública?”, questiona.

CORPORATIVISMO – Poucas vozes se ergueram em favor de Moro no episódio dos vazamentos das escutas telefônicas. Além do Conselho Federal da OAB, que publicou nota com críticas às referências “desairosas, deselegantes e desrespeitosas” à Justiça reveladas em alguns dos áudios gravados do ex-presidente, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) também se solidarizou com o magistrado numa manifestação oficial.

“As decisões [de Moro] no curso desse processo foram fundamentadas e embasadas por indícios e provas técnicas de autoria e materialidade, em consonância com a legislação penal e a Constituição”, afirma a entidade em defesa da divulgação das escutas. A Associação também diz que Moro “tem demonstrado equilíbrio e senso de justiça” durante as investigações. “A Ajufe não vai admitir ataques pessoais de qualquer tipo, principalmente declarações que possam colocar em dúvida a lisura, a eficiência e a independência dos juízes federais brasileiros”, declara.

 

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