POLÍTICA

A Reforma da Previdência agoniza

Sem apoio no Congresso, o governo apela para o “mercado” em busca de apoio para a Reforma da Previdência, enfraquecida após a CPI que esvaziou a tese de déficit e escancarou a má gestão do sistema
Por Flavia Bemfica / Publicado em 13 de novembro de 2017
CPI da Reforma da Previdência trouxe a público a farsa do déficit e a má gestão da seguridade

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

CPI da Reforma da Previdência trouxe a público a farsa do déficit e a má gestão da seguridade

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

Após a Câmara dos Deputados livrar Michel Temer da segunda denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República (PGR), que acusou o peemedebista de obstrução da justiça e formação de quadrilha, o governo ensaia retomar sua proposta de Reforma da Previdência. Tão logo Temer obteve o resultado favorável no Congresso, no final de outubro, o governo partiu para o ataque, e os ministros com maior poder na administração, como os titulares da Fazenda, Henrique Meirelles; da Secretaria Geral da Presidência, Moreira Franco; e da Casa Civil, Eliseu Padilha, voltaram a insistir na tese de que seria fundamental aprovar o texto neste ano. Na prática, mesmo após ter escapado da segunda denúncia, Temer sabe que não dispõe dos 308 votos necessários para fazer a reforma passar na Câmara, em dois turnos. E que uma discussão séria sobre a existência ou não de um déficit vai fatalmente chegar a informações sobre a má gestão e o desvio de recursos históricos do sistema previdenciário.

Soma-se a isso a conclusão do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Previdência (CPIPREV) no Senado, destinada a investigar a contabilidade da Previdência Social. O relatório do senador Hélio José (PROS/DF), com pouco mais de 300 páginas e aprovado por unanimidade também no final de outubro, concluiu que não existe de fato déficit nas contas, apontou inconsistências de dados nas informações anunciadas pelo Executivo federal, explicitou as diferentes metodologias utilizadas para fazer os cálculos e deu publicidade tanto ao montante de isenções como ao tamanho da sonegação.

A CPI apurou que a dívida previdenciária de empresas referente ao não repasse das contribuições dos empregadores, e, em muitos casos, à retenção irregular da parcela contributiva dos trabalhadores, é de R$ 450 bilhões. É mais do que o dobro do déficit apontado pelo governo na Previdência. Conforme informado pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), deste total, R$ 175 bilhões são recuperáveis, o que, levando-se em conta os dados do governo, deixaria os números pelo menos equilibrados.

A Comissão apontou ainda que, somadas, as renúncias de receitas previdenciárias em 2017 serão de aproximadamente R$ 62 bilhões. À CPI, o secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, informou que no ano passado foram retirados R$ 54 bilhões do caixa da Previdência com desonerações, e entregou um documento no qual são elencadas sugestões para o aperfeiçoamento do sistema. Nele, o primeiro ponto sugere uma reavaliação do modelo de renúncias tributárias.

Os trabalhos também concluíram que, em paralelo à ânsia para fazer passar a reforma, e na contramão do preconizado pela PGFN e pela Receita Federal, o governo enviou e aprovou no Congresso em 2017 um novo e mais generoso programa de refinanciamento de dívidas tributárias (Refis), o Pert (Programa Especial de Regularização Tributária). Estimativas feitas no final de maio pela PGFN, antes mesmo de as condições do Pert se transformarem em moeda de troca entre Temer e a Câmara na votação da segunda denúncia, concluíram que em 2017 e nos próximos três anos os resultados do programa serão negativos.

Meirelles, o vendedor de ilusões, um dos ministros de Temer em busca do apoio do sistema financeiro para a combalida reforma

Foto: Antônio Cruz/ ABr

Meirelles, o vendedor de ilusões, um dos ministros de Temer em busca do apoio do sistema financeiro para a combalida reforma

Foto: Antônio Cruz/ ABr

AS CONTAS – No centro dos embates sobre se a Previdência tem um rombo ou é superavitária está a metodologia empregada para os cálculos, que podem levar em conta ou o conjunto da seguridade social (que engloba Saúde, Previdência e Assistência Social) ou somente os números da Previdência. As contas feitas pelo governo mostram que há déficit tanto para o conjunto da seguridade social como para a Previdência especificamente. Os dados do Ministério do Planejamento indicam resultado negativo de R$ 258,7 bilhões na seguridade social em 2016, sendo R$ 151,87 bilhões só no Regime Geral da Previdência Social (RGPS). O Executivo projeta déficit de R$ 188,8 bilhões no RGPS em 2017. E assegura que o peso da Previdência é tamanho que, sem a reforma, o sistema teria resultado negativo superior a R$ 200 bilhões em 2018.

Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) não negam que a Previdência, sozinha, tem resultado negativo. Mas apresentam dados pelos quais a seguridade social teve, em 2016, resultado negativo de R$ 58,9 bilhões, ante um superávit que havia sido de R$ 11,2 bilhões em 2015 e de R$ 55,7 bilhões em 2014. Mas, além de os números ficarem bem aquém dos divulgados pelo governo, as entidades atribuem o resultado negativo de 2016 à combinação entre as distorções e a forte retração da economia. Os números específicos da Previdência, disponíveis até 2015, demonstram uma receita previdenciária de R$ 352,5 bilhões, ante o pagamento de R$ 436 bilhões em benefícios previdenciários. E atualizações feitas pelos auditores para 2016 indicaram incremento de R$ 71,8 bilhões no pagamento de benefícios previdenciários.

Além das desonerações e da dívida bilionária de empresas, especialistas destacam que o governo precisa considerar nos cálculos a Desvinculação de Receitas da União (DRU), o dispositivo que permite ao governo federal desvincular 30% (eram 20% até 2016) das receitas da seguridade social para utilização em despesas de seu interesse. Os cálculos da Anfip apontam que, entre 2005 e 2015, via DRU, houve uma sangria de R$ 519 bilhões de recursos de contribuições da seguridade social, em valores nominais. Em 2016 a DRU retirou R$ 91,8 bilhões da seguridade social.

Outro ponto de divergência é a inclusão dos regimes próprios de previdência dos servidores públicos na seguridade social. A CPI do Senado concluiu que a utilização de recursos do orçamento da seguridade social para o pagamento de benefícios do chamado Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) de servidores públicos impacta fortemente sobre o déficit do sistema.  Desde 2016, o governo optou por classificar os dispêndios com proventos de militares inativos na função Defesa Nacional e na esfera Orçamento Fiscal. Mas a Anfip destaca que, além das despesas dos regimes de Previdência de servidores e de pensionistas militares, seguem existindo outras inclusões, como as que envolvem regimes de servidores do Distrito Federal.

As distorções, conforme os levantamentos da entidade, não param por aí. Os dados da Anfip assinalam que a rubrica de ‘Assistência ao Servidor’, relativa a despesas com os pagamentos dos planos de saúde dos servidores públicos e com o auxílio-alimentação, não poderia ser considerada como pertencente à seguridade, da mesma forma que pagamentos de planos de saúde não podem ser considerados despesas do SUS e pagamento de auxílio-alimentação não se enquadram como despesa da assistência social. Da mesma forma, no entendimento dos auditores, despesas com assistência ao militar, que tratam de ações de saúde prestadas pelos hospitais militares e outros convênios, não poderiam ser classificadas como seguridade social.

Para a economista Denise Gentil, governo vai manter o projeto, pois desconsidera a realidade e o que pensa a população

Foto: Wilson Dias/ ABr

Para a economista Denise Gentil, governo vai manter o projeto, pois desconsidera a realidade e o que pensa a população

Foto: Wilson Dias/ ABr

O quinto ponto de divergência é a desconsideração de recursos resultantes de aplicação financeira dos diversos órgãos da seguridade social, uma vez que autarquias, fundações e fundos podem aplicar seus saldos financeiros e receber rendimentos dessas aplicações. O caso mais significativo apontado pelas entidades que questionam os números do governo é o do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que recebe recursos de suas aplicações no BNDES e em outras instituições. De acordo com os cálculos apresentados pela Anfip, somente em 2015 foram subtraídos do FAT R$ 14 bilhões.

“Mesmo com todos os questionamentos, acredito que o governo vai levar adiante a tramitação da reforma, porque não tem consideração pela realidade dos fatos fiscais ou pelo que pensa a população. Apesar disso, avalio que as mudanças não passam”, conclui a professora Denise Gentil, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Gentil é autora da tese de doutorado A Política Fiscal e a Falsa Crise da Seguridade Social Brasileira – Análise Financeira do Período 1990/2005, na qual conclui que o sistema de seguridade social é financeiramente autossustentável e capaz de gerar excedentes, mas tem parcela significativa de suas receitas desviada.

Fonte: CPI da Previdência do Senado Federal

Fonte: CPI da Previdência do Senado Federal

ENTREVISTA | HÉLIO JOSÉ DA SILVA LIMA

“As contas do governo são fraudulentas”

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

Foto: Marcelo Camargo/ ABr

O senador Hélio José (Pros/DF), relator da CPI da Previdência no Senado, enfatiza que não existe déficit, mas má gestão e que o governo não cobra devedores. Para ele, o governo não terá os votos necessários para aprovar a reforma previdenciária no Congresso.

 

Extra Classe – O senhor acredita que as conclusões do relatório influenciam a determinação do governo em votar a reforma neste ano?
Hélio José da Silva Lima – Sim, de forma definitiva, porque demonstram que as contas do governo são furadas e tendenciosas. Com um relatório que comprova que não existe o déficit alardeado, que há uma péssima gestão e que o governo não cobra os devedores, a reforma não se viabiliza de forma nenhuma em ano pré-eleitoral. E o presidente foi inocentado aí na Câmara com uma maioria muito pequena. Com isso não consegue aprovar Reforma da Previdência. São necessários 308 votos em dois turnos na Câmara e depois mais 54 votos em dois turnos no Senado.

EC – Após o relatório, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, disse que o déficit da Previdência é inquestionável e defensores da reforma falam que há, por parte de algumas entidades e partidos, a tentativa de esconder ‘a realidade das contas’.
Hélio José – Mas o governo, com suas contas fraudulentas, também fala que tem um déficit de R$ 140 bilhões, mesmo que os devedores devam R$ 450 bilhões. O relatório está à disposição de toda a população. Para fazê-lo ouvimos autoridades do Executivo, Judiciário, Legislativo, sociedade civil, entidades, técnicos e catedráticos de diferentes universidades. É um documento devidamente calçado em sua base técnica. Por isso foi aprovado por unanimidade. E desqualifica a conta que o governo fez para tentar aprovar essa reforma dos banqueiros.

EC – Mas há décadas existe a constatação de que há um déficit crescente na Previdência.
Hélio José – Por causa da má fé. A Constituição brasileira é muito clara: há um tripé chamado seguridade social, composta por saúde, assistência e previdência, e que tem como fontes as contribuições previdenciárias, a CSLL, a Cofins, o PIS/Pasep, e os Concursos e Prognósticos (Loterias). Se o governo estivesse colocando todas e não usando o dinheiro da seguridade para fazer outras coisas, haveria um superávit de R$ 11,8 bilhões. Não somos contra uma reforma, mas queremos que faça com que os devedores paguem suas contas e que a lei seja para todos.

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