POLÍTICA

A herança maldita

Por Flávia Bemfica / Publicado em 16 de outubro de 2018

Herança Maldita de Temer_Edgar Vasques_Ilustração

Ilustração: Edgar Vasques

Ilustração: Edgar Vasques

O pesquisador Carlos Ranulfo Melo do Centro de Estudos Legislativos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sintetiza a crise deixada pelo atual governo ao próximo da seguinte forma: não dá para creditar todos os problemas só a Temer pelo fato da crise se iniciar na transição do primeiro para o segundo mandato de Dilma, já que sua administração cometeu erros. Mas, segundo ele, a gestão Temer piorou e muito as coisas e é de longe a pior que já tivemos. Seria impossível comparar os dois governos, porque enquanto que Dilma sofreu um cerco institucional, Temer teve todo o Congresso a seu favor. “O governo Temer é reacionário e só não causou maiores estragos porque depois do caso JBS perdeu potencial, acabou”, explica

Ao assumir o cargo, daqui a menos de três meses, o novo presidente da República encontrará mais do que um país ainda dividido por visões antagônicas de um projeto de nação. Apesar de o governo Michel Temer insistir na tese de que ‘arrumou a casa’ e fez reformas que eram necessárias para evitar que o país quebrasse, como a lei do teto dos gastos, que congelou investimentos por 20 anos, e a mudança na legislação trabalhista, e de destacar que controlou a inflação, na prática a herança deixada ou aprofundada por ele inclui piora de uma série de indicadores sociais, milhões de desempregados e uma população que viu seu poder de compra ser corroído.

Medidos por diferentes instituições dentro e fora do Brasil, os números nacionais ajudam a entender a tensão constante. O fato de Temer passar os últimos dois anos e meio atendendo às exigências do mercado, por exemplo, não fez com que o valor do dólar, que acaba impactando toda a economia, arrefecesse. A cotação da moeda norte-americana também ajuda a compreender a corrosão do poder de compra da população. Quando a ex-presidente Dilma Rousseff deu início ao conturbado segundo mandato, em janeiro de 2015, o salário mínimo brasileiro, em dólares, era de U$$ 291, em valores da época. Em agosto de 2016, quando Temer assumiu em definitivo o lugar de Dilma, após o impeachment, já havia caído para US$ 275. A trajetória não mudou nos dois últimos anos. Neste mês de outubro, o salário mínimo, de R$ 954,00, equivale a aproximadamente US$ 238.

O aumento em 2018 (de 1,81%) foi o menor desde a criação do Plano Real, há 24 anos, e ficou abaixo da inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor, o INPC, que foi de 2,07%. Para 2019, último ano da atual fórmula de reajuste, está previsto um aumento que, nas mãos de quem o recebe, se torna insignificante: em abril, quando apresentou a proposta da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019, o governo havia anunciado uma estimativa de R$ 1.002,00 para o salário mínimo no próximo ano. A Comissão Mista de Orçamento do Congresso (CMO), contudo, baixou a projeção em R$ 4,00, para R$ 998,00, em função da estimativa menor de inflação. Na prática, muda quase nada. Porque, conforme o acompanhamento histórico feito pelo Dieese, o mínimo necessário para suprir as despesas de uma família de quatro pessoas hoje deveria ser de R$ 3.636,04. Já os R$ 4,00 não compram nem um litro de gasolina, muito menos um botijão de gás de cozinha. Conforme o acompanhamento de preços feito pela Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP), o valor médio do botijão de 13Kg de GLP na última semana de setembro foi de R$ 68,78: o equivalente a 7% do salário mínimo. O preço máximo registrado no período foi de R$ 88. Desde que o governo mudou a política nos preços dos combustíveis, os consumidores passaram a ter dificuldades em acompanhar as oscilações, o que não mudou nem após o país parar em abril com os protestos dos caminhoneiros.

Crise econômica e caos social

A crise econômica e o caos social que ela gera insistem em aparecer em vários outros indicadores, alguns mais visíveis, como os números do desemprego; outros que chamam a atenção internacional, como os índices de pobreza, que assustam, como a mortalidade infantil; silenciosos, como o aumento da mortalidade decorrente de doenças crônicas; e com consequências a longo prazo, como os indicadores da educação. Em setembro, o Ministério da Educação divulgou a mais recente leva de dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Os dados mostram um ‘suspiro’ nos anos iniciais do ensino fundamental: a meta era uma nota de 5,5, e a média alcançada foi de 5,8. Mas o avanço parou por aí. Nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio as médias, de 4,7 e 3,8, respectivamente, ficaram abaixo das metas previstas, de 5 e 4,7.

“Não dá para creditar todos os problemas só ao governo Temer. A crise se inicia na transição do primeiro para o segundo mandato de Dilma, e sua administração cometeu erros. Mas a gestão Temer piorou as coisas. É de longe a pior que já tivemos. E comparar os dois governos é impossível, porque enquanto que Dilma sofreu um cerco institucional, Temer tinha todo o Congresso a seu favor. O governo Temer é reacionário e só não causou maiores estragos porque depois do caso JBS perdeu potencial, acabou. Ao mesmo tempo, no Congresso, o Centrão se impôs”, avalia o professor Carlos Ranulfo Melo, pesquisador do Centro de Estudos Legislativos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao projetar o próximo governo, ele destaca como principal desafio a recuperação de bons indicadores sociais em meio à crise econômica e a permanência de um Congresso que segue dominado pela centro-direita.

Um bloco que tenta atribuir ao ciclo petista encerrado em 2016 tanto os desanimadores indicadores sociais como as advertências internacionais de hoje, ignorando a série de reformas e medidas dos últimos dois anos, como a trabalhista. Vendidas como uma panaceia para combater a crise e o desemprego, as mudanças na legislação trabalhista remetem a um documento lançado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em 2012, intitulado ‘101 Propostas para Modernização Trabalhista’, e foram apontadas como extremamente lesivas aos trabalhadores por entidades representativas do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Justiça do Trabalho e por pesquisadores do mundo do trabalho. O que não impediu que tramitassem e fossem aprovadas ‘a jato’, entre dezembro de 2016 e julho de 2017.  Os empregos não vieram, mas outras mazelas associadas a sua falta sim.

Os últimos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no final de setembro, mostram que quase 30 milhões de pessoas seguem tentando buscar trabalho.

A miséria cresceu mais de 11%

De acordo com os números, no trimestre entre junho e agosto deste ano, 27,5 milhões de brasileiros se encontram na categoria subutilizados (pessoas desocupadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e na força de trabalho potencial): são 756 mil a mais do que no mesmo período de 2017. O contingente de subocupados também subiu. Eram 6,2 milhões no trimestre de junho a agosto de 2017. Agora são 6,7 milhões. E o número de pessoas desalentadas, aquelas que desistiram de procurar emprego, passou de 4,2 milhões entre junho e agosto do ano passado para 4,8 milhões neste período de 2018. A falta concreta de um emprego alcança um contingente de 12,7 milhões de brasileiros.

Não são só desempregados, desalentados, desocupados e subutilizados. O número de miseráveis também voltou a aumentar. Desde o final de 2016, a pobreza extrema cresceu 11,2%. No início do ano passado, 13,34 milhões de pessoas viviam em situação de pobreza extrema no Brasil. No final do ano, o número saltou para 14,83 milhões. Os indicadores constam do relatório da LCA Consultores divulgado pelo IBGE em abril, a partir de microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. O estudo mostrou que, em 2017, a renda diminuiu para ricos e pobres. Mas enquanto entre o 1% mais rico da população o ganho médio no mês passou de R$ 15.975,00 para R$ 15.504,00, uma queda de 2,3%, na fatia dos 5% mais pobres as perdas foram maiores: o ganho médio mensal, que era de R$ 49,00 em 2016, foi reduzido para R$ 40,00 (uma queda de 18%). Resultado: aumentou a desigualdade.

Todas as regiões, inclusive o Sul e o Sudeste, mostraram piora nos índices e foi o segundo ano consecutivo de seu aumento no Brasil, apenas cinco anos depois de o país ter passado por um ciclo oposto. Entre 2001 e 2012, conforme os números da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 75% da pobreza extrema no Brasil havia sido erradicada.

Mortalidade infantil avança

Foto: Sidney Oliveira/Ag. Pará - Fotos Públicas

Foto: Sidney Oliveira/Ag. Pará - Fotos Públicas

A taxa de mortalidade infantil, um dos principais indicadores considerados para medir o desenvolvimento de um país, é outra realidade a espelhar a crise e o desmonte das políticas públicas. Em 2016, após 26 anos de quedas consecutivas, ela voltou a aumentar, atingindo 14 bebês de até um ano de idade a cada mil nascidos. Foi um aumento de 5% em relação ao ano anterior, interrompendo uma trajetória que era descendente, com uma redução média anual na faixa dos 4,9%. Os dados de 2017 não foram fechados, mas o Ministério da Saúde já adiantou que a taxa deve ficar, no mínimo, em 13,6. As informações sobre as mortes de crianças até cinco anos também geram desesperança. Em números absolutos, foram 36.350 mortes nessa faixa etária. O Ministério da Saúde apontou a epidemia do vírus da zika e a crise econômica como causas para o aumento da mortalidade infantil. Os dados falam por si: 597 das 36.350 crianças mortas em 2016 foram a óbito por diarreia, uma das chamadas ‘causas evitáveis’, por estar diretamente ligada a determinantes sociais. Em maio, um estudo publicado na revista científica Plos Magazine por seis pesquisadores com atuação em instituições brasileiras, da Inglaterra e dos Estados Unidos, investigou como a redução na cobertura do Programa Bolsa Família e na estratégia nacional de atenção primária à saúde decorrentes da adoção da política de austeridade fiscal podem afetar a taxa de mortalidade de menores de cinco anos e as desigualdades socioeconômicas na saúde infantil no país até 2030.

Um milhão de mortes por doenças crônicas

A morte ronda também os adultos. Em junho, como parte de estratégias globais, a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que, considerados todos os tipos de doenças crônicas não transmissíveis, o número de vítimas anuais no país é próximo a 1 milhão. As doenças crônicas não transmissíveis não crescem só no Brasil e estão relacionadas também ao envelhecimento da população. Mas, aqui, conforme dados do próprio Ministério da Saúde, a morte por doenças cardiovasculares, câncer, diabetes e doenças respiratórias crônicas atingiu 421 em cada 100 mil habitantes em 2016. O aumento é quase imperceptível em relação a 2015, mas, de novo, interrompeu um curso em queda desde o ano 2000. Combinados com o aumento na faixa etária dos 30 aos 69 anos, que passou de 350,7 para 354,8 mortes a cada 100 mil habitantes, os dados se tornam ainda mais preocupantes e impedem o país de cumprir a principal meta do Plano Nacional de Enfrentamento de Doenças Crônicas. Pesquisadores dentro e fora do governo já estudam sua relação com o impacto gerado pela crise econômica sobre o acesso ao sistema de saúde e ao emprego.

“Vamos precisar de uma recuperação da ideia de República, da valorização daquilo que é público, que é de todos. Por exemplo: o Brasil é um país de privilégios em vários setores. Não é só no econômico, no estatal também, existem carreiras extremamente privilegiadas enquanto outras não têm qualquer apoio. É preciso fazer essa revisão. E igualmente no setor tributário”, projeta o professor adjunto da Faculdade de Direito da UFMG, Rodolfo Viana Pereira.

 

 

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