POLÍTICA

Orçamento Participativo: de Porto Alegre a Nova Iorque

Por Cristiano Goldschmidt / Publicado em 8 de outubro de 2019

Michael Menser

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

O americano Michael Menser é um pesquisador sobre a democracia participativa, a sustentabilidade e a resiliência ecológica a partir de várias perspectivas e em diferentes níveis: no governo, na família e nas empresas. Professor Doutor em Filosofia, fundou e é um dos principais membros do Participatory Budgeting Project (PBP), órgão que estrutura a implantação, funcionamento e expansão do Orçamento Participativo em Nova Iorque (EUA). Menser esteve em Porto Alegre (RS), para participar do I Seminário Internacional Transformações Comunitárias Participativas: os casos de Porto Alegre/RS e Brooklyn/NYC, realizado no final de setembro pelo Grupo de Pesquisa Identidade e Território (Gpit) e pelo programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (Propur) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).

 

Extra Classe – A partir de que momento a experiência do Orçamento Participativo de Porto Alegre se tornou referência e alternativa para Nova Iorque?
Michael Menser – Eu vim para Porto Alegre em 2005 para conhecer pessoas e ver como elas agem para fazer o Orçamento Participativo funcionar. Eu me interessei pelo assunto quando fazia graduação em Nova Iorque e um professor meu disse: “vai para o Brasil, vai para Porto Alegre”. O modelo porto-alegrense era o modelo sobre o qual a gente aprendia. E percebíamos que o Orçamento Participativo não só dava mais poder para a população da cidade sobre o orçamento, mas também ajudava a melhorar a vida das pessoas discriminadas ou marginalizadas, dando a elas mais infraestrutura e recursos. Eu pude visitar as cercanias ontem e hoje, e vi os projetos que promoveram e continuam promovendo melhorias em termos de saneamento e incremento da economia local.

EC – Ao pensarmos as questões identitárias e territoriais, o que diferencia e o que aproxima a realidade latino-americana da realidade dos Estados Unidos e, mais especificamente, de Nova Iorque?
Menser – Bem, em Nova Iorque, todos têm acesso à infraestrutura básica – calçamento, saneamento, energia elétrica, etc. Apesar disso, ainda existe muita desigualdade em Nova Iorque e nos demais estados dos Estados Unidos, o que piorou nos últimos 15 anos. E as condições de moradia para as pessoas, por exemplo, em moradias populares, são muito precárias. Como na América Latina, essa desigualdade também tem muito a ver com o tema racial, atingindo menos os brancos e mais aos negros e pardos.

EC – Como nessa conjuntura é possível cavar espaços para a participação comunitária nas decisões que lhes dizem respeito?
Menser – O Orçamento Participativo acontece em Nova Iorque há oito anos. Direciona quantidades limitadas de dinheiro para projetos locais que levam benefícios reais para as pessoas. Mas ainda não atingiu os grandes projetos de desenvolvimento da cidade. No ano passado, a cidade mudou a sua constituição para tornar o Orçamento Participativo obrigatório para toda a cidade. Com isso, foi instalada uma nova comissão municipal para criar uma infraestrutura que permitisse realizar o Orçamento Participativo com um orçamento maior. Também foram criados novos meios, como um canal institucional para que mais nova iorquinos possam ter conhecimento e maior impacto na tomada de decisões que lhes dizem respeito. Isso, na verdade, é separado do Orçamento Participativo, mas os dois órgãos podem apoiar um ao outro. Isso aconteceu porque havia vereadores que queriam uma maior participação nas tomadas de decisão que elegiam as prioridades para a cidade.

Na última primavera, quando um dos homens mais rico do mundo, dono da Amazon.com, quis construir sua sede em Nova Iorque, a cidade disse: “não, não queremos”. A comunidade empresarial teve praticamente um ataque cardíaco e disse: “qual a alternativa?” E essa negativa se deu porque, juntamente com a comunidade, nós estamos trabalhando em outro modelo de desenvolvimento econômico. E a Câmara Municipal e o prefeito estão dando todo apoio a isto.

EC – Pode nos dar algum exemplo de transformação urbana que teve a participação da comunidade e que se tornou símbolo de inovação e sustentabilidade?
Menser – A maioria dos projetos do Orçamento Participativo que venceram e foram implementados não eram relacionados à sustentabilidade. Cerca de 20%, sim, estavam relacionados, e o de maior impacto foi em compostagem. Cerca de 30% do lixo em Nova Iorque é resíduo orgânico que pode ser compostado. Mas, ao invés disso, ele era recolhido em caminhões e levado para lixões no Sul dos Estados Unidos, o que era agravado pela emissão de poluentes pelos caminhões. Creio que no terceiro ano do Orçamento Participativo, houve a proposta para o Departamento de Saneamento de Nova Iorque fazer compostagem, o que nunca havia sido feito antes. Agora eles fazem, por toda a cidade. E esse é um grande negócio para nós. Do ponto de vista ecológico, essa compostagem não só ajuda na renovação do solo que dá base às hortas urbanas de Nova Iorque, como é utilizado em parques e elimina a necessidade de enviá-lo para fora da cidade em caminhões a diesel, com todos seus poluentes emitidos. Múltiplos benefícios. E isso por causa do Orçamento Participativo, que foi o primeiro a fazer isso. As pessoas já faziam individualmente, mas agora fazem juntos, como cidade. Esse é provavelmente meu exemplo favorito.

EC – Gostaria que falasse um pouco sobre a questão da gentrificação (processo de transformação de centros urbanos através da mudança dos grupos sociais ali existentes, onde sai a comunidade de baixa renda e entram moradores das camadas mais ricas) e sobre a relação entre classes sociais e territórios.
Menser – A gentrificação é a ameaça mais direta para a maioria dos nova iorquinos. É uma ameaça maior que o aquecimento global ou que as mudanças climáticas para a maioria deles. E tem um maior impacto negativo nas comunidades negras e latinas. E esse é um terreno um pouco escorregadio. Alguns vereadores não queriam o Orçamento Participativo porque eles achavam que as áreas mais ricas iam acabar determinando as propostas. Achamos que era uma preocupação justa. Mas depois de oito anos, não foi o que aconteceu. Os bairros mais pobres se beneficiaram de várias maneiras. Sempre houve uma preocupação que quanto mais se beneficiasse um bairro, especialmente com parques e ciclovias, isso acabaria promovendo mais gentrificação. Mas nós não vimos o Orçamento Participativo desempenhar qualquer papel no aumento da gentrificação. E uma das vereadoras que não queria o Orçamento Participativo porque temia a gentrificação, está começando a fazê-lo esse ano.

EC – Quais os efeitos socioeconômicos da segregação espacial dos mais pobres?
Menser – As partes mais pobres de Nova Iorque, especialmente os bairros negros, têm experienciado muito mais segregação. Mesmo que a cidade tenha se diversificado e hoje mais bairros tenham mais mistura étnica, os negros ainda são muito segregados. Eu não acho que o Orçamento Participativo tenha tido qualquer impacto, positivo ou negativo, sobre isso. E, no próximo ano, quando o Orçamento Participativo também deve ser implementado nas escolas e em toda a cidade, esperamos que esses bairros tenham mais recursos à disposição para que seus projetos sejam realizados, surtindo um efeito socioeconômico positivo de forma mais ampla.

EC – Pobreza e exclusão social comprometem a existência de um ecossistema urbano sadio? Qual a relação entre sustentabilidade ecológica e justiça social?
Menser – Para a primeira, a resposta é sim. Em Nova Iorque, o lugar onde as pessoas têm pior saúde é no Brooklyn Central e no Sul do Bronx, e são majoritariamente negros e latinos. Definitivamente, existem comunidades tentando usar o Orçamento Participativo para justiça social. Eu acho que o Orçamento Participativo teve um uso muito limitado, ajudou com algumas questões de moradias populares, mas ainda não tem fundos necessários para esse tipo de projeto. E também estamos esperando que o Orçamento Participativo, ao ser implementado por toda a cidade, especialmente no seu primeiro ano, possa focar nos problemas climáticos e ambientais nesses bairros.

EC – Que medidas deveriam ser adotadas pelas gestões públicas para mudar realidades difíceis de cidades, tanto de Porto Alegre como de Nova Iorque?
Menser – Nós estamos muito interessados nessa questão da gestão pública em Nova Iorque. A minha universidade é a City University of New York, que forma muitos servidores públicos, e nós estamos inserindo o Orçamento Participativo no currículo da Universidade. O Orçamento Participativo também está sendo inserido dentro de outras iniciativas de democracia participativa e de inclusão. Penso que com o tempo isso ainda trará muitas contribuições e ajudará a melhorar a realidade de nossa cidade. Isso pode ser feito em Nova Iorque, em Porto Alegre ou em qualquer outro lugar.

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