POLÍTICA

“Estamos na vanguarda da estupidez mundial”, afirma médica que foi barrada no Ministério da Saúde

Vetada por ser contra o tratamento precoce, que qualifica como “delírio”, a infectologista Luana Araújo afirma à CPI que situação no país é insuportável
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 2 de junho de 2021
"“Vejam, eu não pertenço ao mundo de vocês, eu não sou um ser da política, eu sou médica, infectologista, epidemiologista, técnica, leal aos meus pacientes e guiada pelo juramento médico que eu fiz”, avisou Luana aos senadores antes de iniciar o depoimento à CPI

Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

“Vejam, eu não pertenço ao mundo de vocês, eu não sou um ser da política, eu sou médica, infectologista, epidemiologista, técnica, leal aos meus pacientes e guiada pelo juramento médico que eu fiz”, avisou Luana aos senadores antes de iniciar o depoimento à CPI

Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

A médica infectologista Luana Araújo declarou nesta quarta-feira, 2, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 que a situação do Brasil diante da pandemia é intolerável. Apesar de chegar a ser anunciada pelo ministro da Saúde Marcelo Queiroga como Secretaria Extraordinária para o Enfrentamento da Covid-19, Luana viu seu nome ser barrado pelo Palácio do Planalto dez dias depois.

Questionada pelos senadores integrantes da comissão sobre os motivos do veto ao seu nome, ela disse que a pergunta deveria ser endereçada ao ministro Queiroga. Luana afirmou que, mesmo assim, tem em alta conta o atual ministro da Saúde de Bolsonaro. “Honestamente eu também gostaria de saber os motivos” disse, referindo-se à rejeição do seu nome para integrar o ministério. Segundo Luana, a informação partiu do próprio ministro que dias antes a tinha convidado para a função. “O ministro disse que lamentava muito, mas o meu nome não passou pelo crivo da Casa Civil, não foi aprovado”, informou.

Após a afirmação, Luana pediu desculpas por eventual erro no que relatou como trâmite, por não ser do “mundo da política”. Em tom amigável, mas irônico, o vice-presidente da CPI, Randolfe Rorigues (Rede-AP), disse: “Não se preocupe doutora, pois sua dúvida é bem adequada nesse momento”, em clara alusão à estrutura paralela de assessoramento ao presidente da República apontada nos trabalhos da comissão.

Hecatombe

Mais de 460 mil mortos: "só de ontem para hoje, é como se mais de 12 aviões comerciais grandes, lotados, tivessem caído no nosso território. Isso é intolerável"

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Mais de 460 mil mortos: “só de ontem para hoje, é como se mais de 12 aviões comerciais grandes, lotados, tivessem caído no nosso território. Isso é intolerável”

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Após fazer o juramento de praxe à CPI, a médica utilizou parte dos 15 minutos reservados às considerações iniciais dos convocados para alertar sobre o total de mortos pela covid-19 no país, que qualificou como “intolerável”.

“Mais de 320 dias. Esse seria o tempo que teríamos que ficar quietos para respeitar um minuto de silêncio para cada uma das mais de 460 mil mortes pela covid-19 no Brasil. Só de ontem para hoje, é como se mais de 12 aviões comerciais grandes, lotados, tivessem caído no nosso território. Essa é a razão pela qual eu estou aqui hoje: pra mim, isso é intolerável e toda pessoa deve fazer o que estiver ao seu alcance para impedir essa hecatombe”, enfatizou.

A especialista fez questão de deixar claro que seu depoimento à CPI seria como médica. “Vejam, eu não pertenço ao mundo de vocês, eu não sou um ser da política, eu sou médica, infectologista, epidemiologista, técnica, leal aos meus pacientes e guiada pelo juramento médico que eu fiz”, avisou.

O veto e o Neocurandeirismo

Cloroquina: "estamos ainda discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da terra plana a gente vai pular”

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Cloroquina: “estamos ainda discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da terra plana a gente vai pular”

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Durante a oitiva feita pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL) o presidente da CPI, Omar Aziz (PSC-AM), fez questão de lembrar os possíveis motivos para o veto à médica nas instâncias de governo. “Basicamente são dois motivos. O primeiro, por discordar da política pública do governo; a segunda por envolvimentos em atos de corrupção, mal-feitos. Acredito, que, pelo seu posicionamento, o motivo foi político”, concluiu.

Luana Araújo, no ano passado havia chamado o tratamento precoce, uma defesa do governo Bolsonaro, de “neocurandeirismo e iluminismo às avessas”. No entanto, ao ser convidada para integrar o ministério por Queiroga afirmou que nunca debateu esse assunto com o ministro. “Ele é um homem da ciência”, afirmou. Para a médica, ao contrário do afirmado por Nise Yamaguchi na terça-feira à CPI, o debate atual sobre o chamado tratamento precoce é claro e transparente quando aponta a falta de resultados.

“Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente”, disse ao ser questionada por Calheiros se havia conversado com o ministro sobre tratamento precoce, medidas não farmacológicas.

“Quando eu disse que há um ano atrás nós estávamos na vanguarda da estupidez mundial, eu infelizmente mantenho isso em vários aspectos, porque nós estamos ainda discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da terra plana a gente vai pular”, ironizou diante da insistência do senador.

“Não tem lógica, a gente precisa desenvolver soluções, estratégias claras, adaptadas ao nosso povo, ajudar o gestor a encontrar os resultados, porque desses resultados dependemos todos nós”, apontou.

Ameaças

Tratamento precoce: “qualquer pessoa” que defenda medidas sem comprovação científica coloca em risco a sua população"

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Tratamento precoce: “qualquer pessoa” que defenda medidas sem comprovação científica coloca em risco a sua população”

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Ao ser questionada sobre se tomou conhecimento dessa estrutura paralela, Luana disse que não teria condições de dizer, pois no pouco tempo em que esteve apoiando o ministro se focou na estruturação da secretaria.

Ao ser indagada se, no período, sofreu algum tipo de ameaça. A médica lembrou que “eu, como vários infectologistas, sofri várias ameaças desde o início da pandemia”. Segundo ela, ouviu “coisas como ‘não saiam de casa, tomara que sua mãe morra’”.

Durante o seu breve período no ministério, disse, nem chegou a prestar a atenção, pois estava focada, mas depois ficou sabendo que houve tentativas de divulgar o seu endereço, na lógica que “eu teria ligações com isso ou aquilo. Eu não tenho. Sou uma técnica”, afirmou, frisando que “muita gente não é acostumada comigo. Eu sou uma pessoa assertiva”.

Autonomia médica tem limites

Para a infectologista, que tem mestrado na universidade norte-americana Johns Hopkins, referência mundial na pandemia, a autonomia médica para prescrever, por exemplo, medicamentos como a hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 “não é licença para experimentação”.

Sem citar o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), Luana disse que lideranças devem enfrentar a pandemia com informações corretas. “Qualquer pessoa” que defenda medidas sem comprovação científica coloca em risco a sua população, declarou.

Copa América

Ao ser questionada pelo senador Humberto Costa (PT-PE) sobre a sua opinião a respeito da realização da Copa América no Brasil, conforme confirmado pelo governo federal, Luana disse que a realização da competição é temerária. “Mesmo com todos os protocolos, nós estamos em um momento muito delicado”, alertou, ao lembrar que haverá circulação no país de pessoas, atletas, oriundos das mais variadas regiões do mundo.

Antes do depoimento da médica, vários senadores aproveitaram o início dos trabalhados da CPI hoje para protestar contra a decisão do governo em aceitar um torneio que foi rejeitado por vários países devido ao acirramento da pandemia.

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